Análise do discurso de Dilma aponta que outro ajuste fiscal era necessário

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O discurso de Dilma
Por Valter Pomar*
Versão sujeita a alterações.



A Secretaria de Imprensa da Presidência da República divulgou a transcrição do discurso feito pela presidenta Dilma Rousseff na abertura da primeira reunião ministerial, ocorrida no dia 27 de janeiro de 2015.

Trata-se de um documento que deve ser estudado com atenção por toda a militância do Partido dos Trabalhadores, pois apresenta a opinião da presidenta que nós lançamos e ajudamos a eleger.

A primeira “recomendação” que a presidenta Dilma dá para sua equipe de governo é “trabalhar muito para que nós possamos dar sequência ao projeto político que nós implantamos desde 2003”.

"Dar sequência", para a presidenta, significa “conduzir o Brasil a uma nova etapa do processo de desenvolvimento que nós iniciamos em 2003”.

A base disto estaria “em uma política econômica consistente e em políticas sociais geradoras de oportunidades e numa conquista extraordinária: a superação da miséria”.

O objetivo, segundo a presidenta Dilma, é “a preparação do Brasil para a era do conhecimento – com prioridade absoluta para os investimentos em educação, geradores de mais e melhores oportunidades para as brasileiras e para os brasileiros, e da necessária elevação da competitividade da nossa economia, base para um desenvolvimento duradouro. Nessas oportunidades todas, eu propus fazer do Brasil uma Pátria Educadora”.

Em resumo, a presidenta considera que “foi nisso que a maioria do povo brasileiro, dos homens e mulheres deste país deram o seu voto”, ou seja, “fazer com que o Brasil nos próximos quatro anos, tenha condições de ter as medidas necessárias para manter íntegra a estratégia de construir um país desenvolvido, um país próspero, cada vez mais igual, menos desigual, fazendo tudo o possível para manter e fortalecer o modelo de desenvolvimento que mostrou ser possível conciliar crescimento econômico, distribuição de renda e inclusão social”.

Entretanto, a presidenta Dilma lembra que a população brasileira não teria votado apenas por continuidade, mas “votou também por mudanças”.

Por isto a presidenta assume o compromisso de fazer um governo "de continuidade e também um governo de mudanças (...) dar continuidade com mudanças (...) que darão a este projeto ainda mais consistência, mais velocidade”.

É neste contexto que a presidenta Dilma introduz um tema que vem provocando desconforto (vide http://valterpomar.blogspot.com.br/2015/01/outro-ajuste-fiscal-e-possivel.html) em parcelas importantes da militância petista e de esquerda que fez campanha e votou em Dilma no primeiro e no segundo turno de 2014.

Diz a presidenta: “os ajustes que estamos fazendo (...) são necessários para manter o rumo, para ampliar as oportunidades, preservando as prioridades sociais e econômicas do governo que iniciamos há 12 anos atrás. As medidas que estamos tomando e que tomaremos (...) vão consolidar e ampliar um projeto vitorioso nas urnas por quatro eleições consecutivas (...)”.

Portanto, a presidenta Dilma considera que os “ajustes” 1) não são incompatíveis com o projeto iniciado em 2003; 2) são necessários para dar continuidade a este projeto.

Mas qual o papel exato destes ajustes nesta visão de conjunto?

Diz a presidenta que “as mudanças que o país espera, que o país precisa para os próximos quatro anos dependem muito da estabilidade e da credibilidade da economia. Nós precisamos garantir a solidez dos nossos indicadores econômicos”.

A presidenta Dilma deixa claro que os "ajustes" não são as "mudanças que o país espera para os próximos quatro anos".

Os tais "ajustes" seriam uma espécie de pré-condição para as mudanças. Os ajustes visariam dar “estabilidade”, “credibilidade” e “solidez” aos “indicadores econômicos”.

Infelizmente, a presidenta não explica quem tem dúvidas e precisa ser convencido acerca da "credibilidade" da economia. Certamente não é o seu eleitorado.

A partir deste ponto do discurso, a presidenta Dilma faz uma exposição acerca da economia brasileira.

Diz que estamos “sofrendo os efeitos de dois choques. No plano externo, a economia mundial sofreu uma redução expressiva nas suas taxas de crescimento com a China apresentando as menores taxas de crescimento em 25 anos e o Japão e a Europa em estagnação, e os EUA só agora começando a se recuperar da crise. Além disso, há uma (...) queda expressiva nos preços das commodities”, uma queda de quase 59% no preço do petróleo, de 53% do minério de ferro. E, além disso, “uma apreciação significativa do dólar”.

Diz também que no plano interno “enfrentamos, em anos sucessivos, um choque no preço dos alimentos, devido ao pior regime de chuvas de que se tem registro histórico no Brasil. Essa seca também teve, mais recentemente, impactos no preço da energia em todo o Brasil e na oferta de água em algumas regiões específicas e de forma muito específica na região Sudeste”.

Nesta descrição que a presidenta Dilma faz acerca da economia brasileira, não são citados seus problemas estruturais, mas sim o impacto de fatores digamos externos, tais como o comércio internacional, o comportamento do dólar, as secas.

Cabe perguntar:

1) na ausência destes choques externos, a economia brasileira estaria em condições de nos levar ao porto desejado?

2) estes choques externos não teriam relação com a maneira como é estruturada a  economia brasileira?

Por exemplo, os temas da água e da energia não tem relação com o papel do Estado na economia? E a influência do preço das commodities não tem relação com opções feitas (e não feitas) ao longo das últimas décadas, acerca da industrialização e de nossa relação com a economia internacional?

Seja como for, a presidenta enfatiza que estes choques externos foram enfrentados pelo governo federal.

A presidenta Dilma usa a expressão “nós absorvemos”, ou seja, diz que o governo brasileiro pagou a conta da “maior parte” destas “mudanças no cenário econômico e climático”, com o objetivo de “preservar o emprego e a renda. Nós reduzimos nosso resultado primário para combater os efeitos adversos desses choques sobre nossa economia e proteger nossa população. Agora, atingimos um limite para isso”.

Aqui talvez seja o ponto mais importante do discurso: a presidenta diz que o governo brasileiro atuou para evitar que o choque interno e externo afetassem o emprego e a renda do povo brasileiro. Mas também diz que atingimos o limite, ou seja, que não temos mais recursos para continuar absorvendo, combatendo os efeitos adversos destes choques.

(É interessante registrar que a noção segundo a qual estamos no limite está presente no discurso tanto da direita quanto da esquerda. Para setores da direita, estaríamos no limite devido a opções populistas supostamente feitas pelos governos petistas. Para setores da esquerda, estaríamos no limite porque mudamos o que era possível mudar sem fazer reformas estruturais, mas daqui para a frente as mudanças prosseguirão apenas se também fizermos reformas estruturais. O significado dado ao termo é portanto distinto, com a direita defendendo retroceder e a esquerda defendendo avançar. Mas que setores antagônicos falem em limite tem uma importância política muito grande, pois indica que estamos num período de lutas cada vez mais agudas.)

Voltando ao discurso da presidenta Dilma: quando se chega neste tipo de limite apontado por ela, há duas opções fundamentais: cortar as despesas ou ampliar as receitas do Estado.

Vejamos como a presidenta Dilma explica sua opção: “Estamos diante da necessidade de promover um reequilíbrio fiscal para recuperar o crescimento da economia o mais rápido possível, criando condições para a queda da inflação e da taxa de juros no médio prazo e garantindo, assim, a continuidade da geração de emprego e da renda”.

Dificilmente alguém teria como discordar da letra dos objetivos contidos na afirmação reproduzida no parágrafo anterior: reequilíbrio fiscal, recuperar o crescimento, queda da inflação, queda da taxa de juros, geração de emprego e renda.

A polêmica começa na análise das medidas em si, em pelo menos três níveis:

1) se as medidas adotadas geram os efeitos pretendidos;

2) quem será atingido pelas medidas corretivas;

3) se há alternativas melhores.

Outra polêmica diz respeito ao tratamento dado a estas questões durante a campanha eleitoral. Naturalmente haverá quem argumente que não seria conveniente ou prudente, assim como haverá quem argumente que não fazê-lo foi falha grave do ponto de vista democrático. Sendo mais grave ainda que, após a reeleição, não se tenha dialogado a respeito com as principais organizações envolvidas na campanha, entre elas a CUT e o próprio PT.

Como a presidenta não tratou, em seu discurso aos ministros, deste segundo aspecto da polêmica, nos limitaremos a analisar o mérito das medidas, nos três níveis indicados.

Voltemos a palavra para a presidenta Dilma: “Tomamos algumas medidas que têm caráter corretivo, ou seja, são medidas estruturais que se mostram necessárias em quaisquer circunstâncias”.

Aqui somos obrigados a explicitar o que entendemos como três pressupostos implícitos no raciocínio da presidenta.

O primeiro deles é que a opção feita foi principalmente a de cortar despesas, não a de ampliar receitas.

O segundo pressuposto implícito é que cortando despesas agora, promove-se o reequilíbrio fiscal para recuperar o mais rápido possível o crescimento da economia, com isto no médio prazo cairá a inflação e a taxa de juros, permitindo a continuidade da geração de emprego e renda. Ou seja: há um encadeamento temporal que possui evidente impacto político.

O terceiro pressuposto implícito é que, para atingir os objetivos desejados em termos de juros, inflação, crescimento, emprego e renda, não se faz necessário reformar estruturalmente a economia brasileira.

Reformas estruturais dizem respeito a alteração de variáveis como: relação entre o Brasil e a economia internacional; grau de concentração da riqueza e distribuição da tributação sobre os diferentes setores sociais; correlação de forças entre setor estatal e grande capital privado; peso relativo dos bancos públicos e privados; papel da indústria em geral e da indústria de bens de capital em particular, no conjunto da economia; oferta e custo dos bens que determinam o preço da força de trabalho, com destaque para os alimentos, saúde, educação, transporte e habitação etc.

A presidenta Dilma não fala destas reformas estruturais em seu discurso. Quando usa o termo “medidas estruturais”, refere-se a cortes corretivos de despesas, correções necessárias em quaisquer circunstâncias.

Pergunta: cortando despesas, a economia voltará a girar em direção ao objetivo pretendido?

Ou, na ausência de reformas estruturais, ficaremos cada vez mais expostos aos choques externos, a taxas nocivas de inflação e juros, a patamares insuficientes de renda, emprego e crescimento etc.?

De certa forma, o discurso indica a forma como a presidenta responde a estas perguntas.

Sigamos o fio do raciocínio: quando se diz que os ajustes (denominados de medidas estruturais) se mostrariam necessários em quaisquer circunstâncias, é inevitável perguntar: então por qual motivo não foram feitos antes?

Como já lembramos, sempre haverá quem diga: não foram feitos antes por razões eleitorais.

Mas há outra resposta, que está no próprio discurso da presidenta Dilma: os ajustes não foram feitos antes, porque se optou primeiro por reduzir “nosso resultado primário para combater os efeitos adversos desses choques sobre nossa economia e proteger nossa população. Agora, atingimos um limite para isso”.

Há nesta frase uma declaração de responsabilidade social. Mas a frase revela, também, uma determinada reflexão estratégica.

Pois quem acreditasse que é necessário fazer reformas estruturais, teria buscado começar a fazê-las antes da situação chegar ao limite.

Mas quem não considerasse a necessidade estratégica de reformas estruturais, optaria por fazer política anticíclica enquanto os recursos permitissem. E quando os recursos acabassem, como a alternativa das reformas estruturais não está posta como parte da estratégia, só restaria o ajuste fiscal via corte de despesas.

Portanto, aceitos os pressupostos implícitos no discurso, não haveria alternativa ao caminho escolhido. Mas mesmo assim, nada garante que o caminho escolhido vá conduzir aos objetivos pretendidos, por motivos que vem sendo expostos detalhadamente por quem combate a lógica contida nas políticas de austeridade fiscal.

A presidenta defende “adequar, por exemplo, o seguro-desemprego, o abono-salarial, a pensão por morte e o auxílio-doença às novas condições socioeconômicas do país. Essas novas condições mostram que, nos últimos 12 anos, foram gerados 20,6 milhões de empregos formais.
A base de contribuintes da Previdência Social foi ampliada em 30 milhões de beneficiários. O valor real do salário mínimo, que é a base de todo o sistema de proteção social, cresceu mais de 70%. Além disso, a expectativa de vida dos brasileiros com mais de 40 anos aumentou, passando de 73 anos e meio para 78 anos e meio, ou seja, quase cinco anos a mais de vida.
Nestes casos, que são corretivos, não se trata de medidas fiscais, trata-se de aperfeiçoamento de políticas sociais para aumentar sua eficácia, eficiência e sua justiça.

Aceitemos por um momento que “não se trata de medidas fiscais, trata-se de aperfeiçoamento de políticas sociais para aumentar sua eficácia, eficiência e sua justiça”.

Mas se é assim, por qual motivo tais medidas precisam ser adotadas exatamente agora?

Lembremos a descrição feita pela presidenta Dilma: o Brasil está sofrendo o efeito de dois choques, o governo atuou para combater os efeitos adversos desses choques sobre nossa economia e proteger nossa população. Agora, atingimos um limite para isso.

Dito de outra forma: mesmo que os ajustes fossem um aperfeiçoamento de políticas sociais para aumentar sua eficácia, eficiência e sua justiça, o governo decidiu fazê-los agora por conta de seus efeitos fiscais.

A tentativa de negar um fato tão óbvio revela, talvez, que a presidenta tenha sinceras dúvidas acerca de quem pagará a conta da justiça social contida nas medidas de ajuste.

Outra hipótese é que a presidenta Dilma tenta não chamar a atenção para o seguinte: mesmo que a opção seja por fazer ajuste fiscal através do corte de despesas, há despesas muito mais significativas que podem ser cortadas. Por exemplo, através da redução da taxa de juros.

Evitar jogar luz sobre este fato tão conhecido conduz a apresentar os ajustes como cortes corretivos de despesas, correções que se mostram necessárias em quaisquer circunstâncias.

Para quem tem compromisso com a maioria do povo, justiça social exige cortar de quem mais tem. E é óbvio que os que mais têm, não são beneficiários de seguro-desemprego, abono-salarial, pensão por morte e auxílio-doença.

Aqui, uma vez mais, percebe-se um raciocínio implícito no discurso da presidenta: o de que a melhoria das condições socioeconômicas do país gera um crescimento continuado das políticas sociais que é fiscalmente insustentável.

Pois só este raciocínio implícito permite a seguinte sequência lógica: como nos últimos 12 anos, foram gerados 20,6 milhões de empregos formais; como a base de contribuintes da Previdência Social foi ampliada em 30 milhões de beneficiários; como o valor real do salário mínimo cresceu mais de 70%; como a expectativa de vida dos brasileiros aumentou, logo...

...logo é necessário adequar o seguro-desemprego, o abono-salarial, a pensão por morte e o auxílio-doença.

Se a exposição dos fatos fosse outra, incluindo por exemplo o impacto conjuntural dos choques externo e interno, não poderíamos dizer isto. Mas dada a sequência lógica acima, o raciocínio implícito é este: se as coisas melhoraram, os benefícios devem ser reduzidos.

Dizendo de outra forma: se aumentou o salário direto da classe trabalhadora, então é hora de reduzir o salário indireto.

Adotar este jeito de pensar nos levaria a uma de duas conclusões:

1) primeira hipótese: no longo prazo não haverá melhoria continuada, ampliada, das condições de vida da classe trabalhadora, pois a cada melhoria nas condições de emprego e salário, haverá uma contração na oferta de bens públicos (direitos sociais, serviços públicos gratuitos do Estado etc.).

Esta primeira hipótese deriva das teorias neoclássicas e desemboca no neoliberalismo.

2) segunda hipótese: no longo prazo a melhoria das condições de vida da classe trabalhadora virá através (principalmente) da ampliação dos salários diretos, ou seja, da ampliação da capacidade de compra de bens no mercado e não da ampliação da oferta de bens e serviços públicos (salários indiretos);

Esta segunda hipótese desemboca na "teoria do país de classe média", que almeja comprar a felicidade no supermercado.

A presidenta Dilma talvez intua a complicação política e teórica envolvida nestas duas hipóteses. Talvez por isto faça uma comparação totalmente inapropriada: “nós sempre aperfeiçoamos nossas políticas, sempre. E o Bolsa Família é um exemplo, eu diria um excelente exemplo. No ano passado, por exemplo, ano eleitoral, nós tivemos 1 milhão de famílias, 1 milhão e 290 mil famílias deixando o programa por não mais se enquadrarem, seja por razões cadastrais, seja por aumento de renda”.

Acontece que no exemplo citado, não há aperfeiçoamento algum: o cidadão deixou de atender aos critérios necessários para receber o Bolsa Família. Ou seja, como passou a ter salário, como passou a poder adquirir no mercado os meios de sua sobrevivência, não precisa mais do apoio público.

Da mesma forma, o seguro desemprego é ofertado a quem está desempregado. E deve ser interrompido quando o trabalhador volta a estar empregado. Aqui tampouco há aperfeiçoamento, apenas cumprimento das leis e normas que regulam o acesso a uma política pública.

Aperfeiçoamento seria outra coisa, por exemplo ampliar os valores recebidos (seja do bolsa família, seja do seguro desemprego); ou melhorar os mecanismos de fiscalização para garantir que o correto enquadramento dos beneficiários nos critérios.

Claro que a presidenta está de parabéns por “mesmo em ano eleitoral (...) não prejudicar a sustentabilidade do Bolsa Família de retirar essas famílias que tinham sido desenquadradas”.

Parabéns dados, o fato é que seu exemplo não se aplica ao caso em debate. Pois o que está sendo proposto via Medida Provisória é alterar o que hoje vige. E se esta alteração for aprovada pelo Congresso, determinadas situações de desemprego não permitirão mais acesso ao seguro desemprego.

O que o governo está propondo para o seguro desemprego equivaleria a decidir que pessoas que hoje tem direito ao Bolsa Família deixarão de ter, embora sua situação continue a mesma ou tenha até piorado.

O DIEESE fez uma análise detalhada das medidas propostas pelo governo nas MP 664 e 665 e demonstrou detalhadamente que terão vários efeitos sociais regressivos.

Compreensivelmente, uma presidenta do Partido dos Trabalhadores tem dificuldade de assumir que a adoção destas medidas tem natureza eminentemente fiscal.

Mas deveria fazê-lo, até porque isto tornaria o debate mais claro: o governo decidiu cortar onde há menos gordura.

Aliás, quando fala do outro “conjunto de medidas (...)  de natureza eminentemente fiscal, indispensáveis para a saúde financeira do Estado brasileiro”, a presidenta Dilma não vai ao grão.

Reproduzo o que ela diz: “contas públicas em ordem são necessárias para o controle da inflação, o crescimento econômico e a garantia, de forma sustentada, do emprego e da renda. Nós vamos promover o reequilíbrio fiscal de forma gradual. Nossa primeira ação foi estabelecer a meta de resultado primário em 1,2% do PIB. Essa meta representa um grande esforço fiscal, mas um esforço que a economia pode suportar sem comprometer a recuperação do crescimento e do emprego. São passos na direção de um reequilíbrio fiscal que irá permitir preservar as nossas políticas sociais – falo, por exemplo, do Bolsa Família, do Minha Casa, Minha Vida, do Mais Médicos, do Pronatec, das ações para garantir acesso ao ensino superior, do Ciência sem Fronteiras, do combate à violência contra a mulher, por exemplo. A razão de ser da gestão responsável e consistente da política econômica é estimular o crescimento e dar meios para a execução de políticas que melhorem o bem-estar da população. Esta é a razão de ser das políticas”.

Quanto a meta de “resultado primário em 1,2% do PIB”, numa economia que não está crescendo, este número está longe de ser baixo.

Do ponto de vista macroeconômico, significará uma transferência líquida de recursos do Trabalho em favor do Capital. Transferência que será feita através do Estado, por isto é certo falar em “grande esforço fiscal”, mas na origem deste esforço fiscal está o trabalho ampliado e o consumo reduzido de parcelas da classe trabalhadora.

Assumamos por um momento a tese segundo a qual não haveria outra alternativa senão cortar onde há menos gordura. Ainda assim, cabe perguntar: tais medidas vão resultar no pretendido?

Dizendo com as palavras da presidenta, este esforço fiscal pode mesmo ser feito “sem comprometer a recuperação do crescimento e do emprego”? Este reequilíbrio fiscal vai mesmo permitir preservar as nossas políticas sociais”? Esta “gestão responsável e consistente da política econômica” vai estimular realmente "o crescimento e dar meios para a execução de políticas que melhorem o bem-estar da população”?

A resposta a estas perguntas, mais uma vez, está no discurso da presidenta Dilma, que diz: antes reduzimos nosso resultado primário para combater os efeitos adversos desses choques sobre nossa economia e proteger nossa população mas agora atingimos um limite para isso.

A única conclusão lógica é: no curto prazo, tais medidas não vão resultar no objetivo pretendido. Afinal, se quando estávamos gastando, conseguimos reduzir os efeitos dos choques; agora que vamos reduzir os gastos, o único resultado possível no curto prazo é ampliar os efeitos negativos dos choques.

Neste contexto, talvez para atenuar é dito que "as restrições orçamentárias exigirão mais eficiência no gasto, tarefa que estou certa, todos executarão com excelência. Vamos fazer mais gastando menos".

O fato, como reconhece o ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles (vide http://valterpomar.blogspot.com/2015/01/meirelles-nao-e-amigo-mas-avisa.html ) é que no curto prazo a situação vai ficar pior. Salvo, é claro, se houver uma mudança completa no cenário externo, o que é bem pouco provável.

E no médio prazo?

Será que no médio prazo este esforço fiscal vai permitir a recuperação do crescimento e do emprego, preservar as nossas políticas sociais, estimular o crescimento e dar meios para a execução de políticas que melhorem o bem-estar da população?

Novamente, a resposta está no discurso da presidenta. E o que é dito nos leva a concluir o seguinte: mantidos os atuais níveis de receitas do Estado brasileiro (resultado de impostos baixos sobre os ricos), mantidas as despesas fundamentais do Estado (entre elas, o serviço da dívida pública), mantidas as variáveis estruturais da economia brasileira (variáveis que já detalhamos anteriormente), mantidas portanto as condições que deixam altamente expostos aos tais “choques”, a conclusão é que no médio prazo, o melhor resultado que esta política poderia nos oferecer é voltar ao ponto de partida.

Nos marcos desta política de ajuste fiscal via corte de gastos, avançar além do ponto de partida, ou seja, aprofundar as mudanças que conseguimos fazer ao longo dos últimos 12 anos, dependeria de circunstâncias que não estão sob nosso controle (como a situação internacional).

Dito de outra forma: a elevação continuada dos patamares de bem estar social passaria a depender fundamentalmente de terceiros, em especial dos chamados mercados.

Para não dizer que não falamos de flores: a presidenta Dilma informa em seu discurso estar “atuando também pelo lado da receita. Adotamos correções nas alíquotas da Cide sobre combustível e do IOF sobre o crédito pessoal. Também propusemos uma correção do PIS/COFINS sobre bens importados e do IPI sobre cosméticos”.

Acontece que no fundamental estas medidas de ampliação das receitas incidem, direta ou indiretamente, sobre a remuneração do trabalho. Ou seja, novamente busca-se extrair energia onde há menos gordura para queimar.

A presidenta informa ainda que, “além destas medidas de política fiscal, estamos também construindo medidas para viabilizar o aumento do investimento e da competitividade da economia”.

Neste ponto, é apresentada uma relação que inclui o aperfeiçoamento do Supersimples, reforma do PIS/Cofins, Plano Nacional de Exportações.

Sobre a política industrial, a presidenta Dilma diz que “o foco de nossa política industrial, baseada na ampliação da nossa competitividade, será o aumento da pauta e dos destinos de nossas exportações. Se nossas empresas conseguirem competir no resto do mundo, elas conseguirão competir facilmente no Brasil, onde já desfrutam de vantagens locais. A melhora da competitividade depende, entre outras coisas, da simplificação e da desburocratização do dia a dia das empresas e dos cidadãos”.

É evidente a importância da política industrial (a esse respeito, ver a terceira edição da revista Esquerda Petista, disponível no endereço http://www.pagina13.org.br/publicacoes/confira-a-nova-edicao-da-revista-esquerda-petista/#.VMl_iWjF98E ).

Mas o foco na “ampliação da competitividade” desvia o olhar de temas como a política cambial, a oligopolização, a desindustrialização etc.

Dizendo de outras maneira, ampliar a competitividade para a indústria atualmente existente não vai resolver a situação da economia brasileira; vai no máximo resolver o problema de algumas empresas e seu entorno.

Melhor não comentar a ênfase dada ao tema da simplificação e da desburocratização. Afinal, embora seja possível fazer toda a sociedade ganhar com a desburocratização, daí não decore que zerando a burocracia o país vai superar a desindustrialização iniciada nos anos 1980 e aprofundada na era tucana.

O caminho para reindustrializar o Brasil é outro, incluindo ações citadas pela presidenta quando fala da Petrobrás, do modelo de partilha para o pré-sal e da política de conteúdo local.

Aliás, a presidenta Dilma informa já ter iniciado a definição de uma nova carteira de investimentos em infraestrutura. Mas deixa claro que isto será feito ampliando tanto as concessões como as autorizações de infraestrutura ao setor privado. Vamos continuar com as concessões de rodovias, com as autorizações e concessões em portos e ampliar as concessões de aeroportos. Realizaremos concessões em outras áreas, como hidrovias e dragagem de portos, por exemplo.

Óbvio: se chegamos ao limite e escolhemos o caminho do ajuste fiscal através do corte de despesas, os investimentos dependerão mais e mais do mercado. Que só comparecerá em condições que pareçam muito lucrativas.

É por isto que o anúncio de que o Minha Casa, Minha Vida irá contratar a construção de mais três milhões de moradias até 2018, feito no discurso presidencial, foi precedido pela divulgação, aliás não reafirmada no discurso, de que será aberto o capital da Caixa Econômica Federal.

Como é de praxe, a presidenta dedica parte de seu discurso a propagandear as qualidades do Brasil. É evidente, contudo, que falta algo, a saber, o motivo pelo qual um discurso sobre tudo que temos de bom –cosméticos inclusive—termine falando que precisamos de mudanças.

Se precisamos de mudanças, é porque temos problemas, dificuldades, contradições profundas, que nos impedem de melhorar a vida do povo apenas através de políticas públicas.

Se quisermos continuando melhorar a vida do povo, precisamos combinar políticas públicas com reformas estruturais. Ou, para ser mais preciso, viabilizar a ampliação das políticas públicas através das reformas estruturais. Infelizmente, a presidenta Dilma não tratou destas reformas em seu discurso, com uma exceção que comentaremos adiante.

A presidenta falou que “os direitos trabalhistas são intocáveis e não será o nosso governo, um governo dos trabalhadores, que irá revogá-los.” E fez muito bem ao dizer que “não alteramos um só milímetro o nosso compromisso com o projeto vencedor na eleição”.

Mas a maioria do eleitorado votou em nós não apenas porque acredita “que somos os mais indicados para fazer o que for preciso para o Brasil avançar ainda mais”, não apenas porque “acredita em nossa capacidade e em nossa honestidade de propósitos”, mas também porque rejeitou a política expressa no primeiro e no segundo turno pelo PSDB.

E a política tucana tem, entre seus componentes, uma defesa enfática acerca das virtudes do ajuste fiscal baseado em corte de despesas. É por isto -- não por desconhecimento, nem desinformação -- que parte dos que fizeram campanha e votaram em Dilma presidenta consideramos profundamente incorreta a nomeação de Joaquim Levy e suas primeiras medidas, inclusive as MP 664 e 665.

Que o ajuste fiscal seja necessário, provavelmente ninguém discorda; mas outro ajuste fiscal é possível e necessário, por exemplo, ampliando as receitas através da cobrança de impostos dos ricos e reduzindo as despesas com o serviço da dívida, via redução dos juros.

A presidenta prometeu que vai “chegar ao final deste mandato podendo dizer o mesmo que disse do primeiro: nunca um governo combateu com tamanha firmeza e obstinação a corrupção e a impunidade”.  E reafirmou o compromisso com pelo menos uma reforma estrutural, a reforma política: “colocaremos como prioridade, já neste primeiro semestre, o debate deste tema com a sociedade. Sabemos que esta é uma tarefa do Congresso Nacional, mas cabe a nós impulsionar esta mudança, para instituir novas formas de financiamento das campanhas eleitorais, definir novas regras para escolha dos representantes nas casas legislativas, e aprimorar os mecanismos de interlocução com a sociedade e os movimentos sociais, reforçando a legitimidade das ações tanto do Executivo quando do Legislativo”.

Talvez como parte do enxugamento, ou quem sabe por opção redacional, nada é dito acerca de temas como a Constituinte e o Plebiscito. Tampouco se faz a defesa explícita do fim do financiamento empresarial, do voto em lista, do fim das coligações proporcionais, da paridade etc. Acontece que se o governo não impulsionar estas mudanças concretas, prevalecerá o "protagonismo" do Congresso.

Tudo isto posto, a presidenta está em seu direito quando convoca seus ministros a “enfrentar o desconhecimento, a desinformação sempre e permanentemente”. Suponho que isto inclua a desinformação acerca da política internacional, a ignorância sobre os latifúndios existentes no Brasil e o desconhecimento sobre os reais motivos pelos quais falta água para parte da população de São Paulo.

Se aos que estão no governo cabe defender integralmente a posição da presidenta, aos que estamos na planície cabem outras tarefas.

Defender o governo contra a direita, certamente. Organizar o povo para a luta pelas reformas estruturais, igualmente. E, diante de fatos consumados e decisões adotadas sem nenhum diálogo prévio, cabe o direito de criticar publicamente diagnósticos incorretos e decisões erradas, incluindo como parte desta crítica a mobilização social, como estão fazendo a CUT e outras centrais sindicais.

Por fim: para travar com êxito “a batalha da comunicação”, o governo precisa ir muito além do engajamento dos ministros e ministras. É preciso democratizar a comunicação social, assunto no qual estamos 12 anos atrasados e sobre o qual a presidenta Dilma optou não dizer nada em seu discurso, nem mesmo sobre a regulação econômica da mídia.

O que – como certas nomeações -- confirma existirem mesmo afinidades eletivas entre parte da esquerda e os Bourbons. Refiro-me aos que esquecem quase tudo e não aprendem quase nada.

Versão sujeita a alterações.

* Valter Pomar é Dr. em História e membro da Direção Nacional da Articulação de Esquerda
fonte:http://valterpomar.blogspot.com.br/2015/01/o-discurso-de-dilma-aos-ministros.html


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