Impactos econômicos e sociais na infância

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por Mairã Soares Sales

“Então quando o dia escurece
Só quem é de lá sabe o que acontece
Ao que me parece prevalece a ignorância
E nós estamos sós
Ninguém quer ouvir a nossa voz
Cheia de razões calibres em punho
Dificilmente um testemunho vai aparecer
E pode crer a verdade se omite
Pois quem garante o meu dia seguinte”

Pânico na zona sul – Racionais MC’S

1.    Contextualização histórica das transformações ocorridas pelo desenvolvimento

Há inúmeras formas de compreender a causa do desrespeito aos direitos humanos de crianças e adolescentes.  A forma mais eloquente é reler a evolução da civilização humana e os variados contextos históricos até a atualidade.  É interligar passado e presente para construir um futuro de efetiva dignidade onde carinho, proteção, liberdade, democracia, justiça e solidariedade se encontram. O instinto materno de carinho e proteção da mãe com suas crias para garantir a perpetuação das espécies está inscrito no DNA de todo ser do reino animal formando, inclusive, o núcleo base da instituição familiar dos humanos.  As sociedades indígenas, grupos familiares extensos de caçadores – coletores das nossas florestas, com seu modelo educacional coletivo, conservam e vivem ainda hoje este modelo familiar baseado em carinho e proteção. Porém a deturpação cultural e o desrespeito inicia o processo de desigualdade e marginalização das crianças indígenas por uma visão conservadora e preconceituosa “do homem branco”. O mesmo estabelece uma relação de formalidade jurídica e constroe uma concepção devastadora para o curumim esquecendo-se das relações sustentáveis estabelecidas anteriormente.

A defesa da vida e bem estar das crianças e adolescentes torna-se primeiramente uma luta materna, a favor da dignidade humana sempre contradizendo a lógica da exploração e do capital.  Até hoje não quantificamos nem qualificamos quantas crianças serão afetadas com a consolidação de um “grande projeto” se as vantagens e os lucros gerados são bem mais significantes.

A pobreza, a falta de alimentos, a marginalização social e econômica é o elemento detonador que tem o poder de derreter as relações familiares mais primordiais colocando a infância na linha de fogo: o decreto do faraó no antigo Egito, os meninos soldados nas trincheira da revolução francesa, na defesa de Berlim, nas minas de diamantes da Africa (Diamantes de Sangue).

A revolução industrial mudou a cara das economias agrícolas do velho mundo. Não mudou porém os altos índices de mortalidade infantil, o tráfico de mulheres e crianças e, principalmente, para gerar mais lucro, nas fábricas a rotulação de adultos em corpos infantis. Marx traz em sua visão o inicio de uma nova e opulenta escravização, é a prova viva do quanto o lucro está acima das vidas de crianças e adolescentes atolados na miséria que, consequentemente, leva à transgressão, à revolta e consolida a violência das cidades:

[...] milhares de braços tornaram-se de súbito necessários. [...] Procuravam-se principalmente pelos pequenos e ágeis. [...] Muitos, milhares desses pequenos seres infelizes, de sete a treze ou quatorze anos foram despachados para o norte. O costume era o mestre (o ladrão de crianças) vestí-los, alimentá-los e alojá-los na casa de aprendizes junto a fábrica. Foram designados supervisores para lhes vigiar o trabalho. Era interesse destes feitores de escravos fazerem as crianças trabalhar o máximo possível, pois sua remuneração era proporcional à quantidade de trabalho que deles podiam extrair. (…) Os lucros dos fabricantes eram enormes, mais isso apenas aguçava-lhes a voracidade lupina. Começaram então a prática do trabalho noturno, revezando, sem solução de continuidade, a turma do dia pelo da noite o grupo diurno ia se estender nas camas ainda quentes que o grupo noturno ainda acabara de deixar, e vice e versa. Todo mundo diz em Lancashire, que as camas nunca esfriam (MARX, Karl. O Capital. São Paulo. Difel, 1988p. 875-876).

No velho mundo a barbárie continuou nas câmaras de gás do nazismo onde o genótipo humano faria crer que a desigualdade e a discriminação seriam triunfos para higienizar a sociedade prevalecendo assim uma raça pura, superior, eugénica.

Em nosso país o desrespeito às crianças se revelou encarcerando os filhos e filhas dos negros nas senzalas onde o trabalho para o senhor era a única forma de dignidade existente. O domínio da escrita por parte dos seus senhores fez com que essa opressão às crianças e adolescentes fosse cada vez mais recorrente, opressão que não cessou com a liberdade decretada pela Abolição.

No Pará, é rotineira a exploração sexual infantil nas rodovias, trabalho escravo e infantil nas carvoarias, nas fábricas de tijolos, nas roças e fazendas.  Crianças desamparadas nas ruas, esmolando nos sinais de transito das grandes cidades, meninos e meninas soldados e mulas nas mãos do tráfico de drogas...

O desenvolvimento econômico e social é o principal motivador da história da humanidade, sem levar em consideração os impactos causados na população e principalmente as consequências que tem na vida de crianças e adolescentes. É interessante indagar, a partir deste relato histórico, quais as oportunidades concretas de formação, processos ou movimentos de expressão identitária ofertados. Compreender que o contexto econômico, social e geográfico revela a vulnerabilidade em que meninos e meninas se encontram,  gerando violência e marginalização.

Falar de marginalização nos remete ao ato infracional que, sendo uma consequência da exclusão, é visto como motivador da re-inserção formal (e penal) na lógica econômica pela qual a sociedade é regida.  Reinserção por conta do Estado, casa de recuperação, casa penal, presídios... uma vergonha nacional.

Com essa carga histórica nos ombros, a trajetória começa a mudar no momento que os grupos familiares e a sociedade começam a pautar a verdadeira justiça para os meninos e meninas.  Assim a Carta Magna faz com que o mundo se comprometa a alcançar os objetivos de respeito aos direitos humanos infantis. Faz-se necessário pactuar entre nações a garantia da efetiva construção dos direitos humanos e da dignidade de crianças e adolescentes. Nasce a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança no respeito das especificidades territoriais.  A partir da carta maior, os países mobilizaram a construção de normativas próprias – o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Art. 3 Em todas as medidas relativas ás crianças, tomadas por instituições de bem estar social públicas ou privadas, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão consideração primordial os interesses superiores da criança (Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança)

Com isso garantir que ações pautadas no cotidiano das comunidades sejam minimamente refletidas enquanto sempre tem consequências no desenvolvimento peculiar da criança e do adolescente.

Art. 32 Os Estados-Partes reconhecem o direito da criança de estar protegida contra a exploração econômica e contra o desempenho de qualquer trabalho que possa ser perigoso ou interferir em sua educação, ou seja, nocivo para saúde ou para seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social.
(Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança)

Continuamos construindo nosso presente mais solidário, democrático e participativo, conscientes que a ganancia de uns poucos, focados somente no lucro, provoca a miséria de muitos.

2.    A problemática dos atuais impactos do desenvolvimento econômico e a violação do direito

O debate quase infindável sobre as grandes obras no país sempre ocorre pela sua relação mal resolvida com os direitos humanos fundamentais. São incomensuráveis as consequências que estas ações trazem no cotidiano de crianças e adolescentes, no momento em que desconsideram as relações dos espaços de convivência familiar e comunitária, os grupos de interesses específicos que circundam as culturas e a forma como o desenvolvimento local é constituído. Os mentores acabam aproveitando da ignorância e da miséria das populações locais que pensam ganhar uma alternativa de emprego e renda para suas famílias, mascarando a forma real com que os empreendimentos são estabelecidos.

Crianças são deslocadas, de sua região onde vivenciavam sua cultura e formas de expressão, para outro território, periferias alagadas, favelas das grandes cidades, endêmica ausência de politicas públicas .  Juntamente com a miséria de sempre, surgem conflitos internos, perda da identidade cultural e outras violações dos direitos fundamentais.

Temos como exemplo a construção de uma usina hidrelétrica, de um estádio de futebol ou da monocultura do dendê para biodiesel que tem na infância e adolescência efeitos deletérios que não são contabilizados e visualizados em prol de outros impactos: impactos ambientais, especulação da terra, concentração fundiária, conflitos agrários.

O êxodo rural, a desapropriação das terras e desenraizamento do ambiente cultural da família gera evidente instabilidade no cotidiano da criança. Para a família que permanece na terra como pião ou empregado, se estabelece, com o proprietário da terra, uma relação de dependência de mão-de-obra familiar, incluindo as crianças, que, a partir do direito à moradia negada ou precariamente ofertada, gera a omissão de outros direitos como educação, lazer, cultura e saúde. Além do proprietário, a empresa ou executora da obra, torna-se principal financiadora de várias especificidades que regem a vida em comunidade, como a rádio comunitária ou a rede televisiva, fazendo com que de fato as violações fiquem encobertas. A família fica totalmente dependente, seja econômica ou socialmente, daqueles que detêm o poderio da grande obra. Mesmo sendo garantido o direito de professar cultura e religiosidade, no tocante ao meio sócio – econômico, há uma considerável dificuldade em mensurar os impactos seja por não ter uma compreensão dos que direta ou indiretamente são afetados, seja pela delimitação arcaica que temos sobre a compensação pela perda com um pagamento apenas monetário.

Não existe um planejamento pela execução de políticas públicas e programas de governo que atendam as comunidades afetadas. É necessária uma nova abordagem que garanta os direitos a partir das especificidades regionais e as demandas de crianças e adolescentes de certa comunidade.

Com esta nova óptica, podemos observar que o prejuízo é bem mais complexo, por se expandir ao campo da afetividade e da cultura, das relações de troca estabelecidas entre famílias e grupos comunitários e, enfim, da convivência física e espiritual com o meio ambiente.

Modificar a lógica pela qual interpretamos a relação crescimento econômico e custo sócio – ambiental, faz com que haja uma maior reflexão sobre a palavra “progresso”, visto unicamente como implementação de projetos “necessários” e programas de desenvolvimento. Assim entramos num debate sobre a evolução desta palavra de maneira a garantir que o “progresso” tenha consciência ambiental e respeito sócio - cultural, se tornando realmente “desenvolvimento sustentável”.

3.    Conclusão:- A mobilização e a participação popular

Pequenas ações, com certeza, ajudam na mudança do quadro de violação dos direitos humanos de crianças e adolescentes. Estas ações implicam o comprometimento da sociedade perante qualquer ação ou política de governo, não podem ser isoladas, tem que ser compartilhadas com a forma de organicidade local, com a cultura e, principalmente, com um ambiente de carinho, proteção e solidariedade que devem pautar qualquer ação humana direcionada à crianças

Grande parcela de responsabilidade frente à problemática da infância, cabe ao poder publico, ao Estado.  É patente e notória a sua omissão, nas três esferas, federal, estadual e municipal, não só por não cumprir o seu dever de tutor e garantidor dos direitos, no campo da prevenção e da recuperação, mas também por ser, na maioria das vezes, o proponente, incentivador e executor das grandes ações de interesse econômico, os “grandes projetos”.  Não resolvem ações imediatistas ou emergenciais. É preciso mais planejamento e rigor na efetividade das leis que são primordiais como o Eca e o Sinase.  Aliada nessa omissão está a falta de participação e de controle social por parte da sociedade.

A política governamental parece nos mostrar que é impossível conciliar ecologia, direitos humanos e economia.  A qualidade de vida do cidadão, do ser humano, do planeta deve se sobrepor às finanças. O modelo de desenvolvimento sustentável, socialmente justo e ecologicamente correto, pode conciliar o crescimento econômico com o desenvolvimento sadio das crianças e adolescentes, conciliar a barragem com o rio, a reforma agrária com a floresta com sua biodiversidade...

A qualidade de vida depende de hábitos saudáveis junto com o combate e a vitória sobre a miséria. Assim a sociedade precisa amadurecer para que esse modelo seja incluído nos atos governamentais.  É obrigação do governo garantir politicas publicas abrangentes e de curto e longo prazo, sempre em sintonia com a sociedade, para sanar as principais fontes de violação: a miséria e a ignorância.  Vencer o analfabetismo e a ignorância significa superar as visões mercantilistas, patriarcais e uma postura passiva e conivente diante das violações.

O caminho para efetivar o controle social e a denuncia implica o impoderamento daqueles que sentem verdadeiramente os efeitos colaterais da ganancia econômica: formação e informação dos meninos e meninas, a garantia de sua participação e mobilização diante das situações que violam e oprimem sua realidade. O ato de externar seus sentimentos e construir junto com os adultos é a forma mais eficaz de garantir o seu bem estar, a revelação de um olhar diferente pode provocar grande transformação.

Art. 13 A criança terá o direito á liberdade de expressão; este direito incluirá a liberdade de buscar, receber e transmitir informações e ideias de todos os tipos, independentemente de fronteiras, de forma oral, escrita ou impressa, por meio das artes ou por qualquer outro meio da escolha da criança (Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança).

Os impactos sociais somente poderão ser medidos se for levado em consideração o direito de mobilização e a participação dos meninos e meninas. O respeito ao seu corpo, aos gestos que transmitem ao mundo as formas com que estabelecem o conceito de bem estar e dignidade é movimentar, transformar, polemizar, construir.

Palavras que instigam o debate no mais intimo de cada menino e menina; as falas de mudança são ao mesmo tempo esperança e indignação.  Reivindicam o direito primordial de expressão e de participação. Construir outro país, não somente no olhar ou com esperança para o futuro, mas com as mãos e pés de crianças e adolescentes que sugerem outro jeito de agir e pensar o mundo, casa comum e biodiversa da humanidade.

As crianças e adolescentes desta geração recebem como herança o desastre provocado pelo progresso desenfreado, baseado no saque e no desrespeito ao meio ambiente, pela magnitude com que se enxerga o dinheiro. O planeta terra, o jardim na imensidão escura do universo, é a única casa, o único planeta habitável.  Cabe a nós, como diz Leonardo Boff, cuidar, seja de um idoso, de uma criança ou de uma flor. O ato de zelar por este mundo requer aguçar a sensibilidade diante de Gaia (terra mãe) que hoje se revolta contra seus cuidadores. Diante desse quadro, o ato de semear e ver essa planta crescer, é um ato revolucionário.

Acredito que começamos uma transição entre o Homo Sapiens “primitivo”, que, no topo da cadeia alimentar, devasta, somente focado nos lucros contabilizados em papeis, para o Homo Sapiens “global”, que cuida e se vê como jardineiro de Gaia. Quem sabe assim construamos a ideia de bem estar e bem comum, respeitando assim o direito fundamental das crianças de hoje e de amanhã..

Belém e Bujaru (Pará- agosto 2012)


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