Os mandatos de Lula terminaram, resta a saber se a Era Lula terá se encerrado com eles. Para responder é necessário uma avaliação do que o lulismo deixou de mais substantivo e duradouro, ou seja, do seu legado.
Trata-se de difícil questão, impossível encontrar um consenso. Basta ver os diversos balanços realizados. Com os mesmos dados houve hipóteses e conclusões diferentes, quando não antagônicas. Um fato inegável e teimoso é a aprovação de Lula ao fim de oito anos de governo. Uma das últimas pesquisas cravou uma popularidade de 87%, maior que os índices de Michelle Bachelet, no Chile (84%) e de Nelson Mandela, na África do Sul (82%), um record mundial.
Qual o significado histórico da façanha?
Desprezada a rabugenta e anti-democrática idéia, encontradiça em arraiais de direita e de esquerda, de que isto se deve à capacidade de manipulação do líder e à idiotice das pessoas comuns, cabe tentar compreender o fenômeno.
A reflexão sobre vultos da história nacional, como Getulio Vargas e Juscelino Kubitschek, pode ser uma via para exercícios de comparação.
Getulio Vargas liderou um processo que fez do Estado, sintonizado com as aspirações das classes mais dinâmicas do país, um fator maior de desenvolvimento e de reforma da sociedade. Arbitrava os conflitos e conciliava os interesses, o que pode ser feito pela força – inclusive recorrendo-se à tortura como política de Estado, como na ditadura do Estado Novo, entre 1937 e 1945 –, ou pelo voto, quando Getulio, em 1950, voltou ao poder “nos braços do povo”.
Quando as contradições políticas e sociais se acirraram e não foi mais possível agradar gregos e troianos, Getulio, ameaçado em 1954, saiu da vida e entrou na História.
Mas seu legado, o nacional-estatismo, ficou, embalando os sonhos das principais vertentes das esquerdas (o trabalhismo e o comunismo) e inquietando as elites. Permanece até hoje: basta conferir a Constituição de 1988 e a campanha presidencial de 2010.
Já a reconstrução do período juscelinista tem percorrido caminhos sinuosos. Os contemporâneos tiveram dele uma visão crítica: o successor, Jânio Quadros, sufragado com votação consagradora, tinha como símbolo uma vassoura: era preciso varrer a sujeira – da inflação e dos escândalos - deixada pelo governo anterior.
Entretanto, a memória social reconstruiu JK com a marca do desenvolvimento a todo o custo, traduzida no slogan de fazer o país crescer cinquenta anos em cinco. A construção de Brasília, uma cultura produtivista, a primeira Copa do Mundo, o sorriso otimista, a superação do “complexo de vira-latas”, um país que acreditava em si mesmo.
Este é o legado de JK. Presente nos ímpetos desenvolvimentistas posteriores: dos anos de chumbo e de ouro da ditadura civil-militar ao PAC de Lula-Dilma – um país para frente, deixando para trás o atraso, fazendo explodir os indices de crescimento. O resto que se danasse, ver-se-ia depois, quando baixasse a poeira das obras.
Nesta perspectiva de análise, qual terá sido o legado do lulismo?
Lula manteve o nacional-estatismo e a conciliação de interesses. Como Vargas, foi “pai dos pobres e mãe dos ricos”. Também conservou a ânsia desenvolvimentista de JK.
Mas o que distingue o lulismo é a construção de uma sociedade inclusiva, a realização de melhorias graduais no quadro de uma cultura de diálogo, de debate, de barganhas. A negação simultânea da catástrofe revolucionária e do conservadorismo reacionário. Um reformismo moderado que opera mudanças por acúmulos sucessivos e progressivos.
Trata-se de uma outra cultura política. Sem descartar as anteriores, superpondo-se a elas, define uma configuração inovadora.
Embora possa se iludir a respeito, exercitando a elevada auto-estima, Lula é mais criatura do que criador desta cultura. A rigor, ela foi forjada ao longo de décadas por uma pressão silenciosa e anônima por cidadania.
Quando terá se iniciado esta tendência longa e profunda? Difícil determinar um marco preciso, num percurso tortuoso e zigzagueante. As origens mais remotas estão nas grandes lutas travadas no âmbito da república inaugurada com a deposição de Vargas, em 1945, e que conheceram momentos de radicalização entre 1961-1964. Abafadas pela ditadura, tais demandas renasceram em 1967-1968 para serem novamente derrotadas, mas não vencidas. Depois do namoro de grande parte da sociedade com a ditadura, reconstruiram-se no apagar das luzes desta, contribuindo para o seu fim, entre 1979-1981. E continuaram sendo nutridas pelos sucessivos governos democráticos até desabrocharem com grande vigor nos dois governos Lula que, nesta linha interpretativa, são muito mais expressão do que causa de todo o processo.
Eis o legado construtivo e positivo do lulismo: diálogo, inclusão, cidadania, ingredientes essenciais da democracia.
O paradoxal nisto tudo é que a maior ameaça a esta cultura pode vir do próprio Lula, porque ele não desapareceu. Sua sombra e ativismo compulsivo podem se tornar pesados, uma vez que a líderes poderosos costumam corresponder sociedades obedientes e acríticas, ou seja, nada democráticas. Enquanto que as figuras de Vargas e Juscelino podiam se avantajar sem questionar o legado das culturas políticas associadas a suas lideranças, o mesmo não ocorre com Lula e o lulismo.
De fato, a afirmação e a consolidação do que há de mais promissor no legado de Lula passa pelo enfraquecimento de sua avassaladora presença política, algo difícil de se imaginar, considerando-se as características, a trajetória e o vigor remanescente do Cara.
Caberá à sociedade brasileira lidar com a questão. Se conseguir bem fazê-lo, a democracia agradecerá. Se
não conseguir, o melhor do legado lulista poderá se perder.
Fonte: O Globo
*Professor de História Contemporânea da UFF
Email: aaraoreis.daniel@gmail.com
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