Crise na Europa: Austeridade, um meio ou um fim?

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Do blog As Minhas Leituras, Portugal
E se as medidas de austeridade não tiverem sido adoptadas para responder à crise? E se, pelo contrário, a crise tiver sido provocada para possibilitar a austeridade?

A hipótese está longe de ser remota, a acreditar neste artigo publicado no jornal ‘The Guardian’ a que acedi através do blogue da APEDE. O artigo é recomendado a quem lê inglês; e eu, que subscrevo vivamente essa recomendação, tomo a liberdade de o traduzir aqui para quem não o lê.

Para os conservadores esta não é uma crise financeira, mas a oportunidade que esperavam há muito. .

Num exemplo clássico de ‘capitalismo do desastre’, os cortes estão a ser utilizados para remodelar a economia segundo os interesses dos negócios – e para dar cabo do sector público.

Temos estado a olhar para a lista errada. Ao esforçarmo-nos por adivinhar o que nos vai cair em cima amanhã, tentamos entender a primeira fase do ataque do governo britânico ao sector público: a fogueira das agências autónomas da administração pública*. Quase todas as instituições públicas encarregadas de proteger o ambiente, o bem-estar animal ou os consumidores foram mutiladas ou mortas. Mas isto é apenas metade da história. Olhemos de novo, e desta vez façamos uma lista das agências que sobreviveram.

Se o objectivo do governo fosse destruir agências inúteis ou nocivas, teria começado pela Commonwealth Development Corporation. Esta agência foi fundada para reduzir a pobreza nos países em desenvolvimento, mas, quando o ‘New Labour’ tentou e falhou a sua privatização, a CDC mudou completamente de objectivo. Agora despeja dinheiro em empresas privadas lucrativas, aproveitando para enriquecer massivamente os seus próprios gestores. [A revista] ‘Private Eye’ descobriu que esta agência pagou em 2007 ao seu principal director executivo mais de um milhão de libras. A revista mostrou ainda como a CDC´se envolveu numa série de casos de corrupção. Sem cortes. Sem reformas.

O mesmo vale para o Export Credit Guarantee Department. Na prática, o ECGD subsidia empresas privadas avalizando os seus investimentos no estrangeiro. Chegou a gastar 42% do seu orçamento para promover a venda de armas pela BAE**´. Também gasta dinheiro dos contribuintes na prospecção de petróleo em ambientes vulneráveis. Num caso recente, foi mostrado em tribunal que tinha subscrito contratos obtidos com ajuda de subornos. Sem cortes. Sem reformas.

A Sea Fish Industry Authority [Autoridade para a Indústria da pesca no Mar] existe “para ajudar a melhorar os lucros da indústria pesqueira.” Embora se trate duma instituição pública, 10 dos seus onze directores trabalham para a indústria da pesca ou para a da alimentação. A sua missão é “promover o consumo de peixe e marisco”, “defender a indústria no debate público” e “influenciar o processo regulatório a favor da indústria.” Sem cortes. Sem reformas.

O leitor está a ver o padrão? As instituições públicas cujo objectivo seja responsabilizar as empresas estão a ser varridas do mapa. As instituições públicas cujo objectivo seja inflacionar lucros privados, independentemente das consequências para as pessoas e para o ambiente, passam incólumes.

O que as duas listas sugerem é que a crise económica é o desastre por que os conservadores têm rezado. O programa de cortes do governo tem todo o aspecto dum exemplo clássico de capitalismo do desastre: usar uma crise para reformular a economia no interesse dos negócios.

No seu livro The Shock Doctrine,*** Naomi Klein mostra como o capitalismo do desastre foi concebido pelos neoliberais extremistas da Universidade de Chicago. Estas pessoas acreditavam que a esfera pública devia ser eliminada, que o mundo dos negócios devia ter a liberdade de fazer tudo o que quisesse e que quase todos os impostos e quase toda a despesa social devia ser eliminada. Acreditavam que a total liberdade do indivíduo num mercado completamente livre resultaria numa economia perfeita e em relacionamentos perfeitos. Era um sistema utópico tão fanático como o de qualquer seita religiosa. E era profundamente impopular. Durante muito tempo, os seus únicos apoiantes foram os directores das corporações multinacionais e meia-dúzia de lunáticos no governo dos EUA.

Numa democracia, em condições normais, as pessoas prejudicadas pelo fim da provisão pública teriam sempre mais votos que as pessoas que beneficiassem dele. Portanto o programa de Chicago não podia ser imposto nestas circunstâncias. Como explicou o guru da Escola de Chicago, Milton Friedman, “só uma crise – real ou percepcionada – pode produzir uma mudança real”. Quando uma crise nos atinge, explicou ele mais tarde, “uma administração tem entre seis a nove meses para efectuar mudanças de grande vulto; se não actuar decisivamente durante este período, não terá outra oportunidade deste tipo.”

A primeira oportunidade deste tipo foi dada pelo golpe de estado do General Pinochet no Chile. O golpe foi planeado por duas facções: os generais e um grupo de economistas formados pela Universidade de Chicago e financiados pela CIA. As suas ideias já tinham sido redondamente rejeitadas pelo eleitorado, mas agora o eleitorado tinha-se tornado irrelevante: Pinochet utilizou a crise que criara para aprisionar, torturar ou matar qualquer dissidente. As políticas da Escola de Chicago – privatização, desregulamentação, cortes brutais nos impostos e nas despesas do Estado – revelaram-se catastróficas. a inflação atingiu os 375% em 1974; a maior taxa do Mundo. Mesmo assim, Friedman insistia que o programa não estava a se suficientemente radical nem suficientemente rápido. Numa visita ao Chile em 1975, persuadiu Pinochet a bater com muito mais força. O resultado foi um crescimento massivo do desemprego e a quase erradicação da classe média. Mas os muito ricos tornaram-se muito mais ricos, e as empresas, quase livres de impostos, desreguladas e engordadas pelas privatizações, tornaram-se muito mais poderosas.

Em 1982, as receitas de Friedman tinham causado um descalabro económico espectacular. O desemprego atingiu os 30%; a dívida explodiu. Pinochet despediu os economistas de Chicago e começou a re-nacionalizar as empresas afectadas, levando a que a economia começasse a recuperar. O chamado milagre económico do Chile só começou depois de serem abandonadas as doutrinas de Friedman. O programa catastrófico da Escola de Chicago empurrou metade da população para níveis abaixo da linha de pobreza e deixou o Chile com uma das taxas de desigualdade mais elevadas do mundo.

Mas tudo isto foi apresentado pelos media corporativos como se tivesse sido um grande êxito. Com a ajuda de sucessivos governos americanos, foram impostos programas semelhantes a países em que a própria crise assegurava que as populações não lhes poderiam opor resistência. Outros ditadores sul-americanos copiaram as políticas económicas de Pinochet, com a ajuda dos desaparecimentos em massa, da tortura e dos assassínios. A crise de endividamento na parte mais pobre do Mundo foi usada pelo FMI e pelo Banco Mundial para impor programas baseados na Escola de Chicago a países que não tinham outra opção para não fosse aceitar a sua ajuda. Os EUA atingiram o Iraque com uma campanha de choque e pavor económico – privatizações, um imposto de rendimento plano****, desregulamentação massiva – ainda com as bombas a cair. Depois de o furacão Katrina destruir New Orleans, Friedman descreveu-o como “uma oportunidade para reformar radicalmente o sistema educativo”. Os seus discípulos entraram imediatamente em campo, varrendo o que restava das escolas públicas enquanto os habitantes estavam ocupados em refazer as suas vidas e substituindo-as por charter schools privadas.

A nossa crise é menos extrema, portanto, no Reino Unido, a doutrina do choque não pode ser tão amplamente aplicada. Mas, como David Blanchflower avisou ontem, existe uma forte possibilidade de o programa de cortes precipitar uma crise ainda maior: “É um erro horrível, horrível. O que seria sensato seria fasear os cortes por um longo período.” Esta é outra das características típicas do capitalismo do desastre: exarceba as crises que o alimentam, criando assim as suas próprias oportunidades.

Por isso não nos deve surpreender que 35 executivos de empresas escrevessem ontem ao Telegraph preconizando, tal como Friedman, um choque forte e rápido, antes que feche a janela de oportunidade. Esta política poderia reduzir os seus lucros por um curto período, mas quando saíssemos dos nossos abrigos para avaliar os estragos descobriríamos que tínhamos emergido para um mundo diferente, administrado em benefício deles e não no nosso.

Notas:
* Estas agências são financiadas por fundos públicos mas não dependem organicamente do governo. Em inglês são designadas em gíria por ‘quangos’. Também existem em Portugal, mas não conheço nenhuma gíria para as designar. (N.T)
** BAE Systems: empresa privada do sector aero-espacial dedicada especialmente ao ramo militar. (N.T)
***Publicado em português em 2009, com o título A DOUTRINA DO CHOQUE, pela editora SmartBook. (N.T)
****”Flat tax’ no original. (N.T)






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