Por Wladimir Pomar*
Olhando o mundo atual em perspectiva, não é difícil constatar que o
capitalismo gerou uma abundância produtiva imensa e, ao mesmo tempo,
criou um absurdo civilizacional ao manter bilhões de pessoas sem
acesso a tal abundância. E que, quanto mais as grandes corporações
monopolizam a economia, mesmo dos países pouco desenvolvidos, mais
elas colocam em risco o próprio desenvolvimento burguês. Isto é,
emparedam as empresas capitalistas não corporativas, ameaçam a já
limitada democracia econômica da burguesia, comprimem a democracia
social e se confrontam com a necessidade de liquidar a própria
democracia política burguesa.
São essas discrepâncias que abrem a possibilidade de apresentar, no
Brasil, um _programa ou estratégia de transição socialista_, que
preveja a continuidade de empresas privadas como condição para o
desenvolvimento das forças produtivas sociais. Não será mais o
_espírito anticapitalista_, de 1980, nem o espírito temeroso da
Carta aos Brasileiros da campanha presidencial do PT, em 2002, com sua
tática ambígua de continuidade do neoliberalismo, que alguns
pretenderam manter como estratégia.
Nos anos 1980, o PT reiterou uma ideia estratégica do pensamento
socialista e comunista. Isto é, que a emancipação da classe
trabalhadora será obra da própria classe trabalhadora. Por outro
lado, confundiu a contradição fundamental da sociedade capitalista,
entre capital e trabalho, com a contradição principal da sociedade
brasileira naquele momento histórico. A contradição fundamental só
se transforma na contradição principal quando o capitalismo
concentrar e centralizar, em um pequeno número de burgueses, a
esmagadora maioria da massa de meios de produção. Em sociedades como
a brasileira, em que o capitalismo ainda não fechara as portas para
diversos tipos de desenvolvimento capitalista, a contradição
fundamental era a que separava o capital do trabalho, mas a principal
contradição histórica era outra.
Por um lado, o PT demonstrou radicalidade em reiterar que o
capitalismo não muda sem a luta pelo socialismo. Por outro, foi
incapaz de distinguir a contradição principal da sociedade
brasileira da contradição fundamental entre capital e trabalho, e
ficou devendo um programa ou uma estratégia que respondesse à
situação real do Brasil, em que ainda havia espaço para uma série
considerável de reformas de caráter democrático-burguês. E,
também, para a introdução de reformas de caráter socialista, pelas
dificuldades da própria burguesia nacional em cumprir o que deveria
ser seu papel histórico.
Não é por outro motivo que parece haver, no Brasil, concordância em
instituir medidas que assegurem o caráter público e universal à
educação e à saúde; implantem o imposto sobre grandes fortunas;
taxem fortemente os lucros das empresas monopolistas; realizem a
reforma agrária, fortaleçam a agricultura familiar e criem uma
agroindústria ecológica; submetam o sistema bancário ao interesse
coletivo; assegurem o controle público das ações do Estado;
descriminalizem o aborto; democratizem os meios de comunicação em
todos os níveis; deem fim à concentração fundiária urbana;
garantam o domínio do país sobre seus recursos hídricos,
florestais, biológicos e minerais; intensifiquem os trabalhos de
unificação política e econômica dos países latino-americanos;
protejam os biomas ameaçados pelos interesses econômicos; mudem
radicalmente o modelo de transporte público; combatam a corrupção
pública e privada; impeçam o financiamento privado das eleições;
criem mecanismos democráticos de controle externo dos poderes
públicos; consolidem a subordinação do aparato militar ao poder
civil; e imponham a formação democrática a todas as instituições
militares e policiais. Como se nota, todas de natureza
democrático-burguesa.
Essas medidas podem abrir campo para o desenvolvimento posterior do
socialismo, mas não representam mudanças socialistas. Estas só
ocorrem quando a maior parte da propriedade privada dos meios de
produção, circulação e distribuição se tornou propriedade
social. E quando o Estado se tornou um instrumento de poder a serviço
principalmente da classe trabalhadoras e das demais camadas populares
da população, marcando uma diferença de qualidade entre o
capitalismo e o socialismo. Mas essa diferença de qualidade entre
capitalismo e socialismo está longe de ser consensual dentro da
esquerda.
Alguns setores de esquerda temem ou não querem realizar mudanças que
reforcem essa diferença qualitativa. Para eles, basta continuar
realizando maquiagens de reformas e pinturas das favelas, sem ouvir o
que realmente suas populações precisam e querem. Outros setores, por
sua vez, confundem o desenvolvimento capitalista com o desenvolvimento
socialista e acreditam que já constroem o socialismo no Brasil.
Baseiam-se no fato de a burguesia reacionária considerar comunista
qualquer medida democrática, e de a burguesia conservadora considerar
socialista qualquer programa de cunho social.
Em sentido oposto, há setores da esquerda que consideram que um
desenvolvimento de caráter socialista terá necessariamente o mesmo
caráter de destruição ambiental do capitalismo, e buscam uma
_terceira via_ de _não crescimento_ e _não desenvolvimento,_ cujo
resultado mais viável deve ser uma estagnação mais profunda do que
a do período de predomínio neoliberal. E há setores com a ideia
firme de que socialismo é a transformação plena da propriedade dos
meios de produção em propriedade social. Não acham necessário
considerar o estágio de desenvolvimento desses meios de produção.
Portanto, para ser socialista, qualquer revolução social no Brasil
teria que realizar uma construção socialista de tipo soviético,
apenas expurgada do _totalitarismo stalinista_.
A sugestão de que se possa diferenciar o desenvolvimento capitalista,
mesmo que contenha enclaves socialistas, do desenvolvimento
socialista, mesmo que contenha enclaves capitalistas, não faz parte
das considerações de grande parte da esquerda brasileira. Apesar
disso, nas atuais condições econômicas, sociais e políticas do
Brasil, há uma real possibilidade de que ambos os caminhos possam ser
trilhados. Eles podem mesmo, momentaneamente, parecer de natureza
idêntica. Porém, da mesma forma que na bifurcação das espécies,
num determinado estágio de sua evolução, um dos caminhos
subordinará o outro, que perecerá.
O que exige, da esquerda, em especial da que dirige o governo, uma
visão clara da possibilidade de transformar o caminho de
desenvolvimento capitalista, atualmente predominante, em caminho de
desenvolvimento socialista. No estágio de desenvolvimento das forças
produtivas no Brasil, o caminho socialista terá que conviver com uma
proporção de enclaves capitalistas que contribuam para completar
aquele desenvolvimento. Se as forças de esquerda se limitarem a
reiterar que um governo dirigido por elas tem como objetivo
transformar o Brasil num país de classe média, elas na prática
ficarão nos limites da suposta revolução democrática e nos limites
do desenvolvimento capitalista. E enfrentarão crescentes
manifestações de insatisfação popular. Para transformar as lutas
sociais em lutas por um desenvolvimento socialista, além de
radicalizar as reivindicações democrático-burguesas consensuais,
será necessário incrementar os enclaves socialistas na economia, nas
condições sociais e no poder político. E transformá-las em
predominantes.
*Wladimir Pomar é analista político e escritor*
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