por Mauro
Santayana
O julgamento da Ação 470, que chega ao seu fim com sentenças pesadas contra
quase todos os réus, corre o risco de ser considerado como um dos erros
judiciários mais pesados da História. Se, contra alguns réus, houve provas
suficientes dos delitos, contra outros os juízes que os condenaram agiram por
dedução. Guiaram-se pelos silogismos abengalados, para incriminar alguns dos
réus.
O relator do processo não atuou como juiz imparcial: fez-se substituto da
polícia e passou a engenhosas deduções, para concluir que o grande responsável
fora o então ministro da Casa Civil, José Dirceu. Podemos até admitir, para
conduzir o raciocínio, que Dirceu fosse o mentor dos atos tidos como
delituosos, mas faltaram provas, e sem provas não há como se condenar
ninguém.
O julgamento, por mais argumentos possam ser reunidos pelos membros do STF, foi
políticoO julgamento, por mais argumentos possam ser reunidos pelos membros do
STF, foi político. Os julgamentos políticos, desde a Revolução Francesa,
passaram a ser feitos na instância apropriada, que é o Parlamento. Assim foi
conduzido o processo contra Luis XVI. Nele, de pouco adiantaram os brilhantes
argumentos de seus notáveis advogados, Guillaume Malesherbes, François
Tronchet e Deseze, que se valiam da legislação penal comum.
O julgamento era político, e feito por uma instituição política, a Convenção
Nacional, que representava a nação; ali, os ritos processuais cediam lugar à
vontade dos delegados da França em processo revolucionário. A tese do poder
absoluto dos parlamentares para fazer justiça partira de um dos mais jovens
revolucionários, Saint-Just. Ela fora aceita, entre outros, por Danton e
por Robespierre, que se encarregou de expô-la de forma dura e clara, e com a
sobriedade própria dos julgadores — segundo os cronistas do episódio —
aos que pediam clemência e aos que exigiam o respeito ao Código Penal, já
revogado juntamente com a monarquia.
“Não há um processo a fazer. Luís não é um acusado. Vocês não são juízes, vocês
são homens de Estado. Vocês não têm sentenças a emitir em favor ou contra um
homem, mas uma medida de segurança pública a tomar, um ato de providência
nacional a exercer. Luís foi rei e a República foi fundada”. E
Robespierre, implacável, explica que, em um processo normal, o rei poderia ser
considerado inocente, desde que a presunção de sua inocência permanecesse até o
julgamento. E arremete: “Mas, se Luís é absolvido, o que ocorre com a Revolução? Se Luís é inocente,
todos os defensores da liberdade passam a ser caluniadores”. Os fatos
posteriores são conhecidos.
O STF agiu, sob aparente ira revolucionária de alguns de seus membros,
como se fosse a Convenção Nacional. Como uma Convenção Nacional tardia,
mais atenta às razões da direita — da Reação Thermidoriana, que executou
Robespierre, Saint-Just e Danton, entre outros — do que a dos montagnards de
1789. Foi um tribunal político, mas sob o mandato de quem? Quem os elegeu? E
qual deles pôde assumir, com essa grandeza, a responsabilidade do julgamento
político, que assumiu o Incorruptível? E qual dos mais exacerbados poderia
dizer aos outros que deviam julgar como homens de Estado, e não como juízes?
Como o Tartufo, de Molière, que via a sua razão onde a encontrasse, foram em
busca da teoria do domínio do fato, doutrina que, sem essa denominação, serviu
para orientar os juizes de Nurenberg, e foi atualizada mais tarde pelo jurista
alemão Claus Roxin. Só que o domínio do fato, em nome do qual incriminaram
Dirceu, necessita, de acordo com o formulador da teoria, de provas concretas.
Provas concretas encontradas contra os condenados de Nurenberg, e provas
concretas contra o general Rafael Videla e o tiranete peruano Alberto Fujimori.
E provas concretas que haveria contra Hitler, se ele mesmo não tivesse sido seu
próprio juiz, ao matar-se no bunker, depois de assassinar a mulher Eva
Braun e sacrificar sua mais fiel amiga, a cadela Blondi. Não
havendo prova concreta que, no caso, seria uma ordem explícita do ministro a
alguém que lhe fosse subordinado (Delúbio não era, Genoino, menos ainda), não
se caracteriza o domínio do fato. Falta provar, devidamente, que ele cometeu os
delitos de que é acusado, se o julgamento é jurídico. Se o julgamento é
político, falta aos juízes provar a sua condição de eleitos pelo povo.
As provas contra Collor não o condenariam (como não condenaram) em um processo
normalDessa condição dispunham os membros da Convenção Nacional Francesa e os
parlamentares brasileiros que decidiram pelo impeachment do presidente Collor.
As provas contra Collor não o condenariam (como não condenaram) em um processo
normal. Ali se tratou de um julgamento político, que não se pretendeu
técnico, nem juridicamente perfeito, ainda que fosse presidido pelo então
presidente do STF.
A nação, pelos seus representantes, foi o tribunal. O STF é o cimo do Poder
Judiciário. Sua sentença não pode ser constitucionalmente contestada, mesmo
porque ele é, também, o tribunal que decide se isso ou aquilo é constitucional,
ou não. A História, mais cedo do que tarde, fará a revisão desse processo, para
infirmá-lo, por não atender às exigências do due process of law, nem
à legitimidade para realizar um julgamento político.
O julgamento político de Dirceu, justo ou não, já foi feito pela Câmara dos
Deputados, que lhe cassou o mandato.
Jornal do Brasil
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