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O efeito bumerangue de uma fotografia

por José de Souza Martins

A problemática fotografia de Lula, Haddad e Maluf (feita por Adriana Spaca, da Brazil Photo Press) confraternizando sorridentes é, seguramente, um dos mais interessantes temas desta penúltima semana, de junho de 2012, como material de análise no campo da Sociologia Visual. Mas o é, também, na perspectiva de realidades que Henri Lefebvre define como analisadoras-reveladoras, aquelas situações que contém em si mesmas funções metodológicas, as que, ao se proporem, já decompõem o real, expondo seus conteúdos propriamente interpretativos, reveladores de contradições e significações que, normalmente, são desvendadas através da análise sociológica.

Política e historicamente adversários radicais, a fotografia desmente valores profundamente inscritos na consciência social, tanto de adeptos de Lula quanto de adeptos de Maluf. A fotografia, inesperadamente, deu imagem e personagens para um dito que há anos corre de boca em boca, o de que certas pessoas seguem, na política, a lógica de Colombo: indo pela direita, um dia chegarão à esquerda.




A fotografia é apenas a explosão do retrocesso histórico dos valores do PT desde a campanha que levou Lula à Presidência em 2003. Consciente de que sem recuos ideológicos e éticos não chegaria ao poder e nele não ficaria, a história tanto do PT quanto de seu fiel aliado, o PCdoB, desde então, vem sendo uma história de laboriosa construção da cumplicidade em relação a ideias e metas do que historicamente a retórica desses partidos definiu como direita. Dez anos passados desde quando o recuo começou a se tornar público, nenhum efeito dramático teve entre petistas, simpatizantes e aliados, mantido que foi nas abstrações próprias da distância entre o percebido e o visto. O retrocesso explodiu quando ganhou uma imagem que lhe deu visibilidade nos prosaicos gestos e expressões da vida cotidiana: o cúmplice polegar levantado de Maluf, o sorriso camarada dos três, o afago de Maluf em Haddad, as expressões de alegria e satisfação, que arrancam a política de seus bastidores e esconderijos e, maquiavelicamente, a jogam na cara do cidadão e do eleitor.

Erundina sabia do trato? Não podia deixar de saber. Não sabia da fotografia. Mas Erundina se viu nos olhos dos que viam a fotografia. Melhor conhecedora do povo do que os três personagens do ato fotográfico, sabe ver-se nos olhos do outro. Ela se viu no que era visto e não no que ela própria via. E viu que os que viam a fotografia a viam nela, embora nela não estivesse. Há liames simbólicos poderosos atados nessa foto comprometedora. Todos estão vendo muito mais do que a foto quer mostrar, porque, na verdade, a foto contém muito mais do que o mero retrato.

Essa foto é emblemática, é um contrato entre opostos e supostamente adversários. É um ato de rendição incondicional do vencido, até porque não foi feita em território neutro, mas nos jardins da casa de Maluf, o adversário que, até mais do que ideológico, supunha-se que fosse um adversário moral, a ser combatido e vencido no terreno da ética e dos bons costumes. A foto documenta uma transgressão de Lula, de seu candidato, de seu partido. Esse é o motivo pelo qual a foto foi o assunto da semana, não necessariamente os fotografados. Transgressão é uma abstração que, normalmente, pode ser percebida, mas não pode ser vista. Neste caso excepcional, a fotografia permitiu que a transgressão, ética e política, se tornasse visível.

A foto documenta que nada visível separa os dois supostos lados do sistema de antagonismos em que o PT ganhou vida. Que não há entre eles separação, diferença, mesmo que haja. A diferença era intuitiva, não era factual. Existia não porque fosse factual, mas porque as pessoas acreditavam nela. A fotografia destroça o âmbito do crer, do julgamento subjetivo, porque o crido sucumbe ao que é visível. Mesmo que o visível seja, como ocorre frequentemente, enganoso, fantasioso, puramente imaginário, mesmo quando verdadeiro.
As imagens de uma foto não estão apenas no papel. Estão no imaginário de quem a vê. Erundina viu que estava sendo vista na impropriedade da fotografia alarmante. Por isso, resolveu abandonar a candidatura já combinada de vice-prefeita para retirar-se não da campanha, mas da fotografia. É essa uma evidência interessante ao menos do medo ao poder da fotografia e da imagem.

Quando fiz o curso de Ciências Sociais, a Psicologia Social era disciplina obrigatória do currículo. Um dos autores que líamos, Solomon Asch, falava em efeito bumerangue das ações, como no caso da propaganda, da qual a fotografia é coadjuvante quase obrigatório, o efeito oposto ao pretendido. Advertência para que estivéssemos atentos às motivações ocultas na leitura da informação publicitária, com significações opostas às pretendidas pelo autor da mensagem. O curso das significações pode até mesmo ser alterado por evento inesperado. Lembro-me de famoso produto achocolatado de grande empresa internacional, cujo mote publicitário era: “Gostoso como uma tarde no circo”. Num domingo de 1961, um pavoroso incêndio provocado criminosamente, destruiu um circo em Niteroi e matou 500 pessoas, muitas delas crianças. A empresa produtora do achocolatado mandou suspender sua propaganda logo que a notícia se difundiu. A ocorrência inverteria a pauta de significações de leitura de sua publicidade. O que era bom poderia passar a ser visto como muito ruim.

O mesmo ocorre com a fotografia. Desde seu nascimento, a fotografia passou a ter funções inesperadas nos acontecimentos históricos, sociais e políticos. Polissêmica, é ela hoje a conexão com o entendimento que dos fatos e acontecimentos podem ter as pessoas comuns. A célebre fotografia do hasteamento da bandeira americana em Iwo Jima (1945), feita por J. Rosenthal, na verdade uma foto quase posada num intervalo de almoço de soldados que descansavam, deu uma imagem às aspirações de heroismo dos americanos, como se fosse um ato de bravura e determinação, o que não era. O fotógrafo não teve essa intenção ao fazer a fotografia. Estava ali, com a câmera, e aproveitou para fotografar o levantamento do mastro com a bandeira.


As fotografias posadas de Hitler construíram a imagem pública de um condutor messiânico, em contraste com sua insignificância cotidiana e sua personalidade arredia e problemática, como se vê nas anotações de seus auxiliares mais próximos: o oposto das fotografias. Mussolini também foi objeto de fotografias que procuravam expô-lo como condutor de um povo altivo. Mas a pose excessiva, arrogantemente fascista, tornava-o uma figura bufa, o que não será percebido pela multidão de seus seguidores porque na fotografia viam o que ele não era.

Pio XII, com relativa frequência, teatralizou momentos solenes e rituais das cerimônias de que participava, o que era próprio da cultura política daquela época. Em particular no chamado “gesto magno”, que sugeria intensa e particular comunicação com o sagrado. Esse gesto, registrado em várias fotografias do Pontífice, foi significativamente trabalhado numa gravura de capa de edição do jornal La Domenica del Corriere, de 1951, alusiva a uma visão que o Papa teria tido, nos jardins do Vaticano, em outubro de 1950, do sol girando sobre si mesmo e convertendo-se num disco de prata, do qual emanavam feixes de luz. Mesma visão que teriam tido, tempos antes, os moradores de Fátima, em Portugal, lugar de aparecimento da Virgem.


A pesquisa de John Cornwell sobre Pio XII e o acesso que teve aos arquivos do Vaticano e ao processo de sua beatificação mostram indícios que Pacelli, nos gestos desse tipo, preparava intencionalmente o caminho de sua própria canonização. É célebre a fotografia tirada de dentro do Palácio Apostólico, por trás do Pontífice que dava a bênção no balcão, ao povo reunido na Praça de São Pedro, quando uma pomba branca entrou na cena da foto. A imagem foi lida como manifestação do Espírito Santo e da santidade do Papa. No entanto, as indagações da comissão encarregada do processo sugerem dúvidas que são, na verdade, as dúvidas suscitadas pela polissemia da fotografia e da imagem decorrente, relativa ao episódio.


Um efeito oposto é o da famosa fotografia de Ernesto Che Guevara, feita pelo fotógrafo cubano Alberto Korda para simbolizar o militante altivo da Revolução Cubana, uma ruptura no viso servil do latinoamericano subdesenvolvido. Correu mundo como retrato simbólico da juventude revolucionária do fim dos anos cinquenta e começo dos anos sessenta, não apenas a juventude comunista, mas a juventude rebelde de todas as nações, os inconformados do mundo do pós-guerra, polarizado em primeiro mundo e terceiro mundo.  Na leitura contemporânea da foto, já havia muito mais do que o contido na Revolução Cubana e na própria ação política de Che Guevara.


Com a morte do Che, a ascensão política da teologia da libertação e o advento das ditaduras latinoamericanas e com elas a tortura, os assassinatos e os desaparecimentos políticos, o código de leitura da fotografia se inverteu. O Che da foto passou a ser visto como um mártir de todas as injustiças do imperialismo e do capitalismo, objeto de uma verdadeira veneração religiosa. O lugar de sua execução passou a ser até mesmo lugar de romaria, misto de política e religião, no teor da nova religiosidade do fim do milênio e mesmo da nova política do pós-Guerra Fria. Essa fotografia teve um papel decisivo na “beatificação” política de Che Guevara, tornando-o um materialista aceitável pelos militantes da esquerda católica em ascensão. Um ícone admissível no mesclado panteão da religiosidade politizada e pós-moderna da América Latina. Na foto, tornou-se reprodutível, polissêmico, objeto de consumo, meio santo e meio mercadoria. A fotografia, no fim das contas, despojou-o do carisma.

Todas essas encenações não eliminaram elementos desconstrutivos contidos nas próprias imagens. A do Papa, porque carregada de indícios de que era fotografia planejada. As de Hitler porque têm excessivo conteúdo de pose ensaiada. As de Mussolini porque a mais ligeira descontextualização mostra-o personagem bufo e desproporcional, muito aquém do poder da massa que se postava diante dele. A fotografia de seu linchamento em Milão, num posto de gasolina, pendurado de cabeça para baixo, é um poderoso documento visual da imagem que já estava na cabeça de muitos italianos, muito antes de que fosse capturado e morto. Foi executado pelas costas e exposto ao escárnio de ponta-cabeça, exatamente o contrário das fotografias que serviram de instrumento de sua consagração pública.

Nesse jogo de imagens, temos uma das mais interessantes expressões da modernidade: os próprios eventos dramáticos e trágicos da história humana antes de serem realidade da história são irrealidade do imaginário. São ficção provisória, tocaia do acontecer, significações ocultas prontas a substituir as visíveis e compreensíveis, predador invisível à espera de oportunidade para atacar e devorar desempenhos, personagens e significações.

A célebre fotografia da menininha vietnamita, nua, correndo da explosão de bombas de napalm, em sua aldeia, feita por Nick Ut, em 1972, foi decisiva para a criação e difusão de um imaginário favorável ao fim da guerra. Ao contrário das referências acima, neste caso a inocência da criança desamparada e em fuga acrescentou significações imaginárias à compreensão que da foto podia ter uma sociedade carregada de culpa em relação a um conflito cuja motivação pouco ou nada tinha a ver com os americanos.


O mesmo, e ao inverso, se observa em relação ao autêntico. Assim como a fotografia confere autenticidade ao que autenticidade não tem, pode tirar autenticidade do que é autêntico, simplesmente porque é fotografia. Portanto, impregnada das incertezas próprias do polissêmico. É o caso da célebre fotografia da morte do miliciano, na Guerra Civil espanhola, feita Robert Capa, em 1936. Ele fazia uma sequência de fotos dos milicianos que acompanhava quando, no exato momento de clicar, o miliciano no qual focava sua objetiva foi atingido por um tiro fatal. Embora a morte tenha sido comprovada, ocorrida naquele dia e instante, a foto de Capa continua cercada de debate e incerteza por conta do que é próprio da fotografia e não do fato.


Não é à toa que políticos e figuras públicas se esforcem todo o tempo para sair sorrindo nas fotografias, como nessa foto de Lula, Haddad e Maluf. Raramente se dão conta de que na imagem entram elementos desconstrutivos involuntários, pequenos detalhes imobilizados no contraponto do fingimento, que comprometem o sorriso e comprometem a imagem que o fotografado gostaria de difundir. Sorrisos imperceptíveis e suspeitos de apresentadores de noticiários de TV, quando anunciam uma ocorrência funesta, dramática ou trágica, arruinam a informação visual e, muitas vezes, a própria carreira do apresentador.

Nesta semana tivemos esse episódio político que foi arruinado por uma fotografia: a de um Lula sorridente confraternizando, cúmplice, com um Maluf mais sorridente ainda em apoio do escolhido do PT para a disputa da Prefeitura de São Paulo, posando no jardim da casa de Maluf. Exigência feita por Maluf, de que sua casa fosse o lugar do encontro, para selar seu apoio ao candidato de Lula, a de ser visitado pelo ex-presidente que seria, assim, “homenageado”. 

O afã de poder de Lula e Haddad os fez cair na armadilha. Esqueceram-se de que, para a população, a busca do poder tem limites éticos e de coerência, mesmo sob o risco da perda de uma eleição. Em consequência, Haddad perdeu seu plano B para a periferia, Luiza Erundina, candidata a vice, compensação para a Marta arredia e relutante, expressão de um PT abatido pelos desmandos do poder pessoal de Lula. Um desastre para a candidatura do apadrinhado do ex-presidente. Os mascaramentos e ocultações da teatralidade política de um partido, neste caso, do PT, vão sendo invadidas pelos segredos e ocultações dos bastidores, fantasmas que o poder pessoal não tem como abater e exorcizar.

O íntegro Helio Bicudo, que já foi figura proeminente do PT, vice-prefeito de Marta em São Paulo, que do partido se afastou, fez uma síntese devastadora, numa das leituras possíveis da fotografia: “Aqueles que são iguais, que têm o mesmo estofo, se cumprimentam.” Provavelmente, sem o saber, Helio Bicudo vale-se de uma premissa sociológica de Karl Marx, em O Capital, um autor que já foi uma referência fundante para o PT: a troca de mercadorias, isto é, as relações sociais por elas mediadas, torna-as equivalentes. Cria, aliás, o equivalente geral, o dinheiro, por meio do qual as coisas trocadas perdem sua diferença e se tornam outra coisa, uma coisa só. Apertos de mãos, fotografados ou não, têm sociologicamente, o mesmo efeito, reduzem os diferentes e antagônicos à homogeneidade de uma mesma coisa, induzem interpretações sobre o que agora se vê e estava oculto, desfazem trajetórias e histórias, dão o que pensar.


* JOSÉ DE SOUZA MARTINS é sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Dentre outros livros, autor de A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto, 2011); Uma Arqueologia da Memória Social – Autobiografia de um moleque de fábrica, (Ateliê Editorial), 2011; A Sociedade Vista do Abismo, (Vozes, 2010); Exclusão Social e a Nova Desigualdade, (Paulus, 2009). Texto de 21 de junho de 2012.





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