Nós e a Argentina

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Paulo Kliass

Merece destaque o elemento pedagógico de várias decisões adotadas pelo governo argentino nos últimos anos, em geral recebidas com desconfiança e surpresa pela grande imprensa, por caminharem na contracorrente de tudo aquilo que recomenda a “boa norma” ditada pelas elites locais e internacionais.


A divulgação da decisão da presidenta Cristina Kirchner, a respeito da nacionalização da empresa petroleira YPF, reacendeu ódios e paixões sobre um tema bastante sensível. As famosas relações entre o setor público e o setor privado, as supostas vocações naturais de um e de outro ente para atuar em áreas estratégicas. E, de quebra, ainda contribuiu para acirrar a polarização das posições no debate sobre desenvolvimento nacional e economia.

Antes de mais nada, é importante registrar o papel decisivo que tem sido desempenhado pelos últimos governos da Argentina em termos de opções de políticas públicas. Entre outros aspectos, destaca-se o elemento pedagógico das decisões adotadas, em geral recebidas com desconfiança e surpresa pela grande imprensa, por estarem justamente indo na contracorrente de tudo aquilo que recomendaria a “boa norma” ditada pelas elites locais e internacionais.

Moratória por lá e nada por aqui

Logo no início do mandato do presidente Nestor Kirchner (2003 a 2007), aquele país estava com suas atividades econômicas bastante comprometidas e uma das razões era o enorme peso representado pelas obrigações financeiras de sua dívida externa. Muito antes de tombarem por terra os pressupostos do neoliberalismo, Kirchner aprofundou a postura mais rigorosa no processo de negociação em curso com os credores e decretou a moratória. Como solução conciliadora, apresentou uma proposta de redução de 70% no valor total devido.

Mas do lado de cá do Rio Paraná, o comando da política econômica

A divulgação da decisão da presidenta Cristina Kirchner, a respeito da nacionalização da empresa petroleira YPF, reacendeu ódios e paixões sobre um tema bastante sensível. As famosas relações entre o setor público e o setor privado, as supostas vocações naturais de um e de outro ente para atuar em áreas estratégicas. E, de quebra, ainda contribuiu para acirrar a polarização das posições no debate sobre desenvolvimento nacional e economia.

Antes de mais nada, é importante registrar o papel decisivo que tem sido desempenhado pelos últimos governos da Argentina em termos de opções de políticas públicas. Entre outros aspectos, destaca-se o elemento pedagógico das decisões adotadas, em geral recebidas com desconfiança e surpresa pela grande imprensa, por estarem justamente indo na contracorrente de tudo aquilo que recomendaria a “boa norma” ditada pelas elites locais e internacionais.

Esse difícil momento foi superado e a Argentina ofereceu aos países em desenvolvimento e ao mundo em geral uma verdadeira lição de como a economia e a política podem e devem andar juntas. E de como, em alguns momentos, é necessário ao Chefe de Estado ousar para implementar mudanças efetivas. O clima de catastrofismo reinante na imprensa local e internacional era pautado, como sempre, pelos interesses do capital financeiro internacional. Decisão jurássica, postura inconseqente, calote irresponsável e outros qualificativos asseguravam que a Argentina sairia isolada no cenário internacional, caso insistisse na estratégia da renegociação mais dura, que era apresentada como um verdadeiro suicídio econômico, político e diplomático.

Kirchner dizia que “toda negociação pressupõe um grau de transgressão das regras”. Aliás, nada mais do que uma grande verdade. E assim o país vizinho não desisti u, aleg ando possuir a legitimidade necessária para tomar a decisão. Chegou até a vencer em todas as instâncias jurídicas internacionais, ao argumentar que as altas taxas de juros presentes nos contratos firmados com os credores eram a contraface do alto risco das operações especulativas. E que, infelizmente, havia chegado o momento do não pagamento. Quem quisesse continuar credor, portanto, deveria aceitar as condições do chamado “canje” - a troca oficial de papéis, com o desconto de 70% sobre o valor de face de cada título da dívida externa.

A grande lição foi que a negociação terminou finalmente por ser aceita pelo mundo financeiro, depois – é claro ! - de muita gritaria, chantagem e ameaça. E, ao contrário do clima artificialmente construído pelos cavaleiros do apocalipse, os investimentos estrangeiros continuaram a fluir para a Argentina ao longo dos anos. Afinal, a economia saía de anos de recessão, o emprego crescia, a produção e atividade em geral foram retomadas. E, como bem sabemos, o capital está sempre à procura de alternativas de rentabilidade. Acusado o golpe e registrada a perda eventual, vamos em frente que os negócios continuam.

No nosso caso, as promessas históricas de auditoria da dívida pública brasileira ficaram como mais uma irresponsável omissão e esquecimento. Ao contrário de Kirchner, nossos dirigentes recém chegados ao poder optaram por seguir a cartilha de adesão ao establishment neoliberal, em que “toda negociação pressupõe um grau completo de submissão”. Reinava o fetichismo de respeito às regras e aos contratos. A dívida externa foi transformada em dívida interna, mas a drenagem bilionária de recursos para pagamento de juros e serviços da mesma manteve-se inalterada. Manteve-se a continuidade do reinado das finanças sobre as demais atividades produtivas.


As relações com os meios de comunicação

As relações com os meios de comunicação. Na relação com os poderosos meios de comunicação, deu-se algo semelhante. O governo da Argentina percebeu a necessidade primordial de democratizar esse que é conhecido como o quarto poder na sociedade contemporânea. Ao invés de seguir empurrando com a barriga essa relação de submissão aos interesses de um setor altamente concentrado e umbilicalmente ligado aos interesses econômicos, encaminhou um projeto ao Congresso, que ficou conhecido como “Ley de los Médios”. Enfrentou os interesses contrariados e teve a ousadia de sair para a disputa no interior da sociedade. Mais uma vez saiu vencedor e o futuro mostrará os acertos de tal opção política pública na área de comunicações.

Por aqui, todos sabemos que o setor de comunicações continua firme e forte, recebendo todas as benesses dos sucessivos governos. E, o pior, fazendo todo tipo de chantagem política contra o próprio governo, sempre que lhes for interessante. O grau de oligopolização avança a cada dia, os cruzamentos de oligarquias regionais e grupos familiares não foram tocados. Acuado pela pressão dos interesses dos meios de comunicação, o governo se restringe a tocar o barco e se esquece da importância política de um projeto democrático e nacional para o setor. Ao invés da ousadia para mudar, o que fica é a marca da submissão pelo receio.

Agronegócios e criminosos das ditaduras: lá e cá

Outro momento marcante na política argentina, foi o enfrentamento dos setores ligados à agricultura, pecuária e o agronegócio de forma geral. Como resposta a uma medida de aumento da tributação sobre suas atividades exportadoras, os representantes da agropecuária deram início a um movimento de contestação aberta e de enfrentamento ao governo. Mais uma vez, Cristina Kirchner manteve-se firme na defesa de seu projeto durante o ano de 2008, mas acabou terminando com a derrota do governo no Senado e a necessidade de recu ar em sua intenção inicial. De qualquer forma, marca também uma diferença de postura em relação aos nossos dirigentes. Por aqui, a avaliação da importância do agronegócio para o desempenho da pauta exportadora tem levado os sucessivos governos a uma conduta de sujeição aos interesses desse setor, que tende a representar práticas e relações sociais atrasadas e de profunda injustiça social e econômica. A ponto de Lula ter declarado que os usineiros de cana eram os “verdadeiros heróis nacionais” e de empresas denunciadas por trabalho escravo continuarem a receber as benesses de crédito do BNDES e de outras fontes públicas de recursos. Ou então, basta ver a líder ruralista, Senadora Kátia Abreu, agora integrante da base aliada e dando a linha para o governo na votação do Código Florestal.

O julgamento e a condenação dos assassinos e torturadores do período da ditadura militar também marcam uma brutal diferença, a respeito da forma como as sociedades argentina e brasileira optaram por restabelecer a verdade. Ali, o caminho adotado não foi pautado pelo medo de enfrentar os algozes e apurar os crimes cometidos. Muito pelo contrário! Ao invés da impunidade e de homenagens sob a forma de pontes, estradas e viadutos, a Justiça foi acionada e os responsáveis estão presos ou cumpriram as penas devidas. Por aqui, em nossas terras, os sucessivos governos conformam-se com a interpretação restritiva da “anistia recíproca” de 1979, quando a própria Constituição soberana de 1988 abriu espaço para refazer a história desse período. Nem mesmo a nossa Comissão da Verdade foi ainda implantada e sua eficácia jurídica é quase nula, pois não tem poder de fazer justiça.


YPF e a Vale

E para fechar, a comparação que não quer calar é entre a YPF e a Vale. Antes dos gritinhos histéricos do “mas não dá prá comparar!”, já adianto que também acho que são processos bastan te distintos. Mas a observação das semelhanças e das diferenças serve também para ilustrar as distintas posturas que os dois países adotaram para tema semelhante e crucial. Cristina optou por voltar ao processo de privatização da empresa estatal argentina, levada a cabo pelo governo Menem em 1993 – contemporâneo de nosso Collor. A avaliação foi que o setor é estratégico para a economia do país vizinho e que a empresa, controlada pela Repsol espanhola, não estaria cumprindo a contento com as necessidades da Argentina, em termos de investimento e de produção. A gritaria local e internacional também foi a mesma, como se poderia imaginar. Os interesses afetados tentam criar o clima generalizado do pré-catástrofe, com todo o apoio dos órgãos de comunicação, inclusive os do nosso lado da fronteira.

Já a nossa Vale foi privatizada, a preço de banana, sob a época de FHC. Leiloada em 1997, o seu valor da compra foi de US$ 3 bilhões , com a poss ibilidade de utilização de moedas podres e outras facilidades concedidas aos futuros proprietários. Uma verdadeira negociata, em nome da comemoração do “fim da era Vargas” e da supremacia da eficiência do privado sobre o público. Afinal, tudo valia pois Francis Fukuyama, um dos ideólogos do conservadorismo da época do neoliberalismo, já havia decretado o fim da História. Mas, como dizia o vizinho da minha tia, nada como um dia após o outro. As receitas liberalóides não se mostraram assim tão perenes, a crise de 2008 derrubou os alicerces daquele mundo artificial e o novo modelo ainda está por se moldar. Mas nem por isso, desse lado do continente sulamericano, o governo resolveu tomar alguma iniciativa. As antigas propostas do PT e o plebiscito a respeito da venda da Vale foram condenados ao esquecimento.

Apenas para se ter uma idéia, desde a posse de Lula até o final de 2011, a empresa privatizada já acumulou e distribuiu entre seus acionistas lucros no valor de US$ 70 bilhões! Isso sem falar do modelo espoliador das nossas reservas minerais e de exportação de renda e emprego para os países, onde a mão-de-obra e outros custos baixos justificam a ação de lesa pátria. Basta lembrarmos a política de exportação de minério de ferro bruto e a importação de manufaturados para o grupo, a exemplo dos trilhos para as ferrovias e a encomenda dos supercargueiros junto aos estaleiros chineses. E não se fique com a impressão de que tal eficiência no desempenho da empresa se deva ao gênio empreendedor de figuras como Agnelli e outros. Basta ver o caso da Petrobrás, ainda pública e batendo todos os recordes de desempenho, para se ter a noção de que se a Vale voltar a ser pública, não deverá ficar muito atrás em sua performance.

Como sempre, basta vontade política. A decisão de reestatizá-la, em termos de eficiência econômica e empresarial, só faria aumentar a auto-estima de nosso povo e poderia, eventualmente, contribuir para um modelo futuro de desenvolvimento nacional menos desigual e mais sustentável. A Argentina deu o pontapé inicial.

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.


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