Menos Amazônia por - Lúcio Flávio Pinto
A aprovação da realização do plebiscito sobre a redivisão do Pará poderá ser a oportunidade de discutir a sério a grave questão do perfil geográfico da Amazônia. Unidades menores permitirão corrigir os erros evidentes no processo de ocupação da região ou apenas irão incrementar seus efeitos desastrosos? Eis a questão.
Na semana passada, meia dúzia de deputados federais, na condição de líderes partidários, decidiram, em votação simbólica, sobre a configuração física do segundo maior Estado da federação brasileira, o Pará. Graças a uma manobra dos parlamentares paraenses, defensores do desmembramento dos 1,2 milhão de quilômetros quadrados que constituem o Pará atual, foi aprovada a realização de plebiscito sobre a criação de dois novos Estados nesse território: Carajás e Tapajós.
Os deputados Giovanni Queiroz (do PDT), Lira Maia (DEM) e Zequinha Marinho (PSC) ameaçaram obstruir a pauta da Câmara Federal se os projetos do desmembramento do Pará, que tramitam há vários anos, não fossem aprovados apenas pelos líderes, sem precisar ir ao plenário para a votação coletiva. O governo, empenhado em limpar a pauta para aprovar seus principais itens, cedeu.
Os separatistas escolheram bem o dia, uma quinta-feira, quando a maioria dos parlamentares já deixou – ou está saindo de – Brasília para seus redutos eleitorais. O deputado Chico Alencar, que não cedeu a sigla do PSOL para a empreitada, questionou a legitimidade da decisão, mas foi vencido pela impetuosidade dos emancipacionistas.
Quanto o tema é a Amazônia, há pouco empenho das grandes lideranças políticas, por desinteresse ou desconhecimento da região. Com mais acuidade, se atentaria para a circunstância (nada casual) de que o principal projeto na pauta da Câmara, que proporcionou o acordo de lideranças, é o do novo Código Florestal, impasse que o governo (e, mais do que ele, os ruralistas) quer ver logo resolvido.
Celeumas à parte, o projeto significa a manutenção e aprofundamento da cultura do desmatamento na última porção do país onde ainda podia ser implantado um inovador modelo florestal, justamente a Amazônia. Ao invés de procurar adequar a forma de ocupação da região às suas características físicas, dentre as quais a cobertura vegetal é essencial, confirma-se e agrava-se a visão do colonizador, de conversão da floresta em pastos, campos de cultivo, cidades, indústrias, estradas, etc. O colonizador continuará a modificar a paisagem para que ela reflita sua condição de homo agrícola, derrubador de árvores.
A redivisão do Pará, que tem sua tradição história em relação à parte oeste do Estado, tornou-se coerente com essa forma de integrar a Amazônia ao território nacional, a partir de uma posição centralizada de mando, com ordens que baixam de Brasília, categóricas, indiferentes às peculiaridades locais, à distinção substancial da Amazônia na relação com as outras partes do Brasil, praticamente despojadas de sua riqueza florestal.
Não que a realização do plebiscito represente um fato negativo. Pelo contrário: finalmente a questão espacial da segunda unidade federativa brasileira poderá ser discutida a sério. Agora haverá conseqüências concretas e graves. Não será mais apenas um evento no calendário acadêmico dos debates sem fim ou sem responsabilidades.
No prazo de seis meses deverá ser promovido o plebiscito. Com maiores probabilidades, de imediato visando Carajás, que agora depende apenas da sanção da presidente Dilma Rousseff. O projeto do Tapajós ainda deverá passar pelo Senado. É possível que na câmara alta se repita o que aconteceu na semana passada, mas não se pode descartar a hipótese de aparecer um complicador, que atrase a tramitação da matéria e retire a simultaneidade dos dois projetos. Sem esse imprevisto, também o plebiscito para a criação do Estado do Tapajós irá à sanção da presidente. Não é provável que ela vete a decisão do parlamento.
Não que aprove a iniciativa. Ao invés disso, a chefa do poder executivo terá muitos motivos para não querer que o desmembramento do Pará prospere. A implantação dos dois novos Estados imporá ao governo federal, pelos próximos 10 anos, nova descapitalização, com a necessidade de suplementar – com alguns bilhões de reais a cada ano – a insuficiência de meios das duas novas unidades federativas para caminhar com as próprias pernas durante os primeiros anos de sua implantação. Do que menos a administração petista precisa no momento é de despesas compulsórias – imprevistas e de peso bem razoável como essas.
Para os mais realistas, a decisão da semana passada dos líderes dos partidos na Câmara é tão simbólica quanto os seus votos. É improvável que a maioria do eleitorado paraense aprove o retalhamento do seu Estado presente. Ao contrário da interpretação conveniente dos separatistas, o entendimento constitucional do Supremo Tribunal Federal é de que a consulta não pode ser feita apenas junto à população localizada na área prevista para os novos Estados. O plebiscito tem que abranger todos os eleitores do Estado.
Mesmo que a maioria deles queira dividir o Pará em três, o resultado do plebiscito será submetido aos 41 deputados da Assembléia Legislativa, sem poder decisório, apenas como função consultiva. Depois precisará da aprovação de uma lei complementar, com a adesão da maioria do Congresso Nacional, em votação individual, sem acordos de liderança, para se tornar realidade. Um caminho ainda longo e complicado.
O Pará que remanescerá dos dois projetos de redivisão tem 60% da população total do antigo Estado, o que pode ser o suficiente para definir a votação. Maciça maioria nesse território votará contra o retalhamento, que acaba com uma das bandeiras seculares do Estado: sua grandeza física, um aval ao qual os seus habitantes esperam sempre poder recorrer para sacar suas esperanças de futuro. Do 2º lugar, abaixo apenas do Amazonas, o Pará que sobraria da redivisão se tornaria a 19ª unidade federativa nacional.
Esse Pará, com apenas 20% da sua área original, ficaria com 60% da população, privado do antigo capital de recursos naturais estocados para viabilizá-lo. Com boa parte do seu território já desmatado e exaurido, teria que refazer sua definição, mais se assemelhando a um Estado da faixa de transição entre o Nordeste e a Amazônia, como o Maranhão. A utopia do futuro grandioso desapareceria. De resto, também para Carajás, vítima maior do desmatamento recente.
Mas pelo menos os dois novos Estados teriam melhores condições para se desenvolver, libertos da tutela da antiga capital e de uma elite incapaz de atentar para as paragens mais remotas de uma unidade administrativa com tamanho equivalente ao da Colômbia, mas com um sexto da sua população? É de se duvidar, no mínimo.
Os dois projetos de lei são coerentes com o modelo colonial de ocupação da Amazônia, não com sua continuidade histórica, embora o Estado do Tapajós seja uma antiga e fundada reivindicação dos habitantes dessa região. Carajás, resultante de iniciativa do senador Mozarildo Cavalcante, que nunca se sensibilizou pelas raízes de Roraima, o Estado que representa no parlamento, consolidará a transformação da paisagem amazônica em sertão, despojando-a do que sobrou de floresta nativa por um processo de desmatamento avassalador.
É este o destino selado de São Félix do Xingu, que, só por uma obtusidade do atores econômicos e a conivência criminosa dos agentes públicos, se tornou o município brasileiro com o maior rebanho de gado (no futuro Carajás, o efetivo será de 20 milhões de cabeças). Quantos milhões de árvores os campos de pastagens sacrificaram? Qual foi a perda dessa conversão irracional?
O Xingu é a prova viva dos erros e distorções de projetos de modificação do espaço amazônico concebidos a toque de caixa, para atender a interesses imediatos. É nessa bacia que se concentra o último grande estoque de mata nativa da margem direita do rio Amazonas em território paraense. Associar São Félix do Xingu ao Estado de Carajás é complementar a obra de legalização do desmatamento ironicamente embutida no novo Código Florestal, que, de florestal mesmo, tem apenas o nome. São Félix devia ser protegido para experimentar uma exploração florestal moderna.
Se é assim em São Félix, em Altamira a existência do Estado do Tapajós se manifesta um completo despropósito. O único elemento de identidade entre a maior cidade do Xingu e a maior do Tapajós, Santarém, destinada a ser a capital da nova unidade, é que ambas sofrem os efeitos do avanço selvagem das frentes econômicas. Historicamente, nem diálogo há entre os dois pólos. É inteiramente artificial a inclusão de Altamira no Tapajós. O efeito será o mesmo que alimenta os ressentimentos contra Belém. O Xingu deveria formar uma unidade a parte, o que não seria de estranhar se o vértice do planejamento fossem os rios e não as estradas de rodagem.
Com 718 mil quilômetros quadrados, o proposto Estado do Tapajós será o terceiro maior do Brasil, inferior apenas ao Amazonas e a Mato Grosso. Com 16% da população atual do Pará e 57% do seu território, terá uma densidade demográfica apenas maior do que a de Roraima, equivalente à do Amazonas, quatro vezes menor do que a paraense de hoje. Como Santarém poderá dar a essa vasta jurisdição um tratamento melhor do que o dispensado pelo atual Pará? Apenas renovará os conflitos que motivam a reação dos nossos dias?
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