As donas da casa

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por José Carlos Fernandes

Pesquisas da Cohab em favelas de Curitiba mostram o assombroso número de mulheres empobrecidas que são chefes de família na capital. Elas chegam a 70% do total de atendidos pela prefeitura e pelo governo federal

Há pouco mais de quatro anos, quando o governo federal abriu as torneiras e voltou a financiar a construção de casas populares, um exército de recenseadores vestiu seus jalecos “azul Bic” e saiu favelas adentro, prancheta num braço, relógio no outro. Era preciso. A verba – que só este ano pode chegar a R$ 12,7 bilhões – só seria liberada para municípios que apresentassem dados consistentes sobre moradia, renda, escolaridade, saúde e trabalho. Não havia outra saída senão fazer expedições de beco em beco. E depressa, porque essa espécie de “segunda revolução habitacional” tem data para acabar, o sugestivo ano de 2012.

O que não se previa era que essa corrida do ouro geraria uma reviravolta no entendimento da pobreza no Brasil. As informações levantadas pela turma da prancheta acabaram sendo tantas e tão reveladoras que causariam calafrios em Josué de Castro, autor do clássico Geografia da Fome. Em 1946, o médico e ativista pernambucano fez miséria com as poucas informações disponíveis, retratando com maestria a exclusão no Brasil moderno. Da falta de estatísticas os pesquisadores de hoje quase não podem se queixar.

 
Graças aos índices conseguidos com as “palmas no portão”, pode-se dizer que por pelo menos uma década estudiosos terão pasto para entender o que acontece com as famílias que descem em alguma rodoviária de capital – com os filhos, as panelas, uns trocados e título frio rumo à favela mais próxima.

Detalhes

Os volumosos estudos da Cohab sobre as ocupações da Bacia do Rio Iguaçu, do Rio Belém, do Rio Formosa ou do Ribeirão dos Padilhas desfazem a imagem das favelas locais como um vasto território monótono de casas em penúria, onde milhares desfrutam a ilusão da informalidade. Esses espaços, ao contrário, abrigam a nova geografia social do país – uma geografia que não se desfaz com casinhas brancas de alvenaria e telhado de barro.

Favelas são, por exemplo, lugares onde há mais portadores de deficiência física e mental do que no resto da população. Onde a organização comunitária é abundante. Onde os jovens estão fora da escola. Onde os negros são maioria. Nesses espaços, idem, homens cada vez menos ajudam a colocar comida na mesa. Quem manda na periferia são elas.

Não se trata se uma informação recém-saída do forno. Em 2008, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Ipea, desossou dados do IBGE e mostrou que entre 30% e 43% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres, algo como 11,1 milhões de casas. Metade dessas matriarcas receberia pouco mais do que um salário mínimo. O resto, deduz-se.

O aumento das chefes de família começou a ser pesquisado na década de 1970. Em 1981, o estudo Sofridas e mal pagas, de Carmen Barroso e Maria Cristina Bruschini, deu caras e números ao problema. De 1992 em diante, passou-se a pensar a questão em porcentagem.

Os dados levantados pelos recenseadores da Cohab na periferia curitibana poderiam ser vistos como uma confirmação da tendência nacional. Não fosse um detalhe: as porcentagens são aqui tão ostensivas que se corre o risco de, nessas áreas, a história da costela de Adão perder a graça; e as palavras pai e marido virarem figuras de ficção.

Aos números: das 54 mil famílias cadastradas pela Cohab-Curitiba para participar do Plano de Aceleração do Crescimento, o PAC, 25.125 famílias precisam ser reassentadas. São, com folga, as mais vulneráveis. Dessas, nada menos do que 17 mil contam com mulheres no comando da pia e do cofre, o equivalente a 70,4% do total. O PAC, aqui, é conjugado no feminino. E não se trata de uma notícia alvissareira, um sinal de que as revoluções sufragistas e sexuais do século 20 tenham encontrado eco entre as mais sofridas dentre as sofridas. Ser titular não é padecer no paraíso.

A “feminização da pobreza”, como batizaram o fenômeno alguns pesquisadores, é um avanço, claro, mas têm um lado perverso. “Elas são mais emancipadas. Não sofrem abuso. Mas a que custo?”, pergunta o arquiteto e urbanista da Universidade de São Paulo Renato Cymbalista, 41 anos, autoridade no assunto. “A mulher chefe de família na periferia só é um fato positivo se não recai sobre elas toda a responsabilidade de produção e reprodução. Essas mulheres não podem ser as únicas numa casa a ganhar dinheiro”, polemiza.

O pesquisador só vê uma saída: medir a desigualdade em que vivem as mulheres chefes, produzindo dados, históricos, relatórios – ou, como dizem nos círculos acadêmicos, “fazendo um recorte de gênero.” As guerreiras do subúrbio, afinal, não são versões classes D e E de libertárias como Leila Diniz. Nem feministas graduadas e esclarecidas, capazes de fazer discursos sobre o corpo e o desejo, mas gente de baixa escolaridade, que consome o corpo trabalhando como diarista – ocupação de uma a cada cinco chefes de famílias.

Ignorar essa condição é um perigo. Os dados da Cohab Curitiba, por exemplo, mostram que 60% delas oscilam entre 31 e 50 anos – faixa propicia à condição das um dia chamadas “largadas”: o casamento naufragou, o ex-companheiro pouco lhes provê e elas, sem qualificação, entregam-se ao trabalho possível para quem abandonou a escola no ensino fundamental (62% ). Com sorte, ganham por volta de R$ 500 (46%). E mais de 32% das “provedoras” curitibanas não têm renda. Esse absurdo é o resumo da ópera.

Cuidadoras?

A lista de desvantagens em não ter o companheiro por perto é tamanha que se chega a questionar se os assistentes sociais da Cohab fazem bem ao motivar as mulheres a assumirem o papel de titular nos financiamentos da casa própria.

A resposta é sim – fazem. Não vale aqui o bordão “ruim com ele, pior sem ele”. “Muitos homens trocavam a casa por um carro”, conta a assistente social Rosângela Gomes, 34 anos, que atua em programas de regularização fundiária da Cohab. Embora não haja dados conclusivos, o vaivém do marido ou dos maridos tende a levar à perda da casa e ao agravamento das condições de pobreza.

Por essas, dentre os pesquisadores ouvidos pela Gazeta do Povo todos são unânimes em dizer que a política de afirmação da chefe do lar precisa ser complementada com políticas complementares. Do contrário, como observa Rosângela Gomes, corre-se o risco de fortalecer a imagem da mulher como “cuidadora” do lar – uma heroína sem direitos. “Já vi mulher com título de propriedade que só olha para baixo, tamanha a servidão em que vive. A chave da casa é uma parte da história”, reforça.

Rosângela – criada numa ocupação no bairro Santa Quitéria e filha de mãe e avó coragem – é mestranda em Gestão Urbana na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Com a autoridade de quem percorreu de cabo a rabo as comunidades da Bacia do Rio Formosa, ela se alinha entre os que entendem o direito à moradia como parte de um direito à cidade. Ou seja, só vale se incluir o acesso à escola, capacitação, geração de renda, orientação para a criação dos filhos.

Os cadastros da Cohab, nesse sentido, mostram que ainda se está no primeiro estágio da inclusão feminina – a da mulher que está livre do mau homem, mas que arca com tarefas demais. Não é difícil identificá-las. Nice Maria Michalus, 40 anos, da Moradias Arroio, na CIC, figura entre as 17 mil heroínas resgatadas da zona de risco pela prefeitura. Sua história é a história por uma casa. (leia na página ao lado) Já morou de favor. Agora é titular: quase 40% do que ganha vai apenas no custeio de transporte público de quatro dos cinco filhos. O nome de Nice, claro, é “trabalho”.

Não causa espanto que, há três anos, 68% das chefes tenham dito ao ao IBGE que se sentem impotentes para tantas funções. E que gastam quase 25 horas por semana para cuidar da casa – depois do expediente. São 3,5 horas/dia – é o que pagam para serem as donas da casa.

Chave
Governo deu incentivo

A partir de 2004, políticas habitacionais do governo federal passaram a focar seus esforços em grupos prioritários. A dizer: famílias com menor renda – até três salários mínimos –, famílias chefiadas por mulheres, idosos, minorias étnicas e deficientes. Os programas, a partir daí, avançaram para questões mais sofisticadas, como os debates de gênero e reflexões sobre o direito à cidade. No que diz respeito às mulheres, estudiosos se perguntam se a conquista da moradia não virou uma prisão ainda maior ao espaço doméstico. Mães provedoras não vão à escola, nem se divertem, porque têm de cuidar dos filhos e da casa depois do expediente. Faltam políticas complementares para que a emancipação seja completa.






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