O dia da estaca

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“Foi como um milagre; diante de nossos próprios olhos, em menos de um segundo, todo o corpo se transformou em pó e desapareceu de nossa vista” (Drácula, de Bram Stoker)

 Por Ayrton Centeno
Milhões de brasileiros tomaram este domingo de outubro nas mãos com imenso cuidado. Havia um compromisso. Era preciso devolver as trevas às próprias trevas, o atraso ao atraso, o esgoto ao esgoto, a farsa aos farsantes, o medo ao medo, o ódio aqueles que odiosamente o disseminaram e a hipocrisia de uma campanha aos hipócritas que a conceberam e encenaram. Para depositar o século 13, que recentemente nos visitou, no seu sepulcro de 700 anos. Ao final da tarde, o serviço estava feito e a missão cumprida. Bem antes das 12 badaladas que separam o dia que morre do dia que vai nascer soube-se, afinal, que a escuridão fora tragada pela própria escuridão.
    Neste 31 de outubro, ensolarado para uns, sombrio para outros, os eleitores partiram de casa portando duas armas: voto e vontade. Juntas, ambas transformaram-se, diante da urna, em um instrumento de redenção. Mas foram além. Simultaneamente exorcizou-se o regressismo que acenava com um passado recente, mas também remoto graças aos adereços obscurantistas com que desfilou na campanha. A tarefa necessária foi realizada tendo a luz solar como cúmplice pois, como adverte a lenda, é quando o mal dorme na sua tumba. Vontade e voto viraram estaca enfiada à força de martelo no coração da miséria moral que nos assolou.
    Quando a madeira rompeu a carne, houve um esgar, o pescoço se retorceu, as mandíbulas avançaram, os caninos se projetaram e as mãos ergueram suas garras além do esquife. Mas era tarde demais.
    Morreu, de morte matada, um tipo de fazer política que foge da política para se refugiar na agenda paralela dos temas de convicção religiosa e comportamental, até então ausentes da disputa. Que, sem vigor para andar com as próprias pernas, valeu-se da muleta da religião. Que plantou no ambiente eleitoral o questionamento do Brasil laico, sacramentado em 1899 com o advento da República e da separação entre Estado e Igreja. Que traficou para a campanha um fundamentalismo até então ausente, veículo que carrega consigo a ameaça aos atuais direitos da mulher e tolhe sua luta para alcançar novos direitos como se planteia em qualquer sociedade justa e harmônica. E a negação de plena cidadania aos homossexuais. Distorções destiladas à superfície, mas, sobretudo, nos subterrâneos da infâmia.
    Morreu um tipo de vale-tudo que fez do preconceito contra a mulher alavanca de uma retórica assumida no horário eleitoral – a adversária vista como marionete e despreparada – ou muito mais ofensiva, mentirosa e covardemente expelida nas cloacas remuneradas do telemarketing e da internet. 
    Morreu a pantomima como elemento de campanha. Que levou ao paroxismo a dramatização de um episódio inexpressivo imaginando, afoita e equivocadamente, que o apoio de uma imprensa conivente até a medula seria o bastante para transmutar o pouco em muito, a água em vinho e o fiasco em tragédia.
    Morreu um tipo de candidatura e de candidato que escalou seu caráter como mero serviçal de uma ambição sem limites. Que não hesitou diante de nenhum dos abismos que se abriram a sua frente: o do ridículo, o da mentira, o da calúnia, o do horror medieval.
    Alguém poderá dizer: mas será mesmo que tudo isso morreu? E terá razão. A morte política, eventualmente, permite ressurreições. Como, durante algum tempo, estratégias canalhas tiveram certo grau de retorno, nada impede que alguém as exume da cripta e as ponha a andar novamente. Ou seja, os tempos que virão não nos dispensam de cautela e, de novo, voto e vontade. Por enquanto, porém, a estaca está cravada e o vento já traz, dos sinos ao longe, o dobre de Finados. O 31 de outubro não sorriu para determinados políticos, projetos e práticas. Mas seu dia já os aguarda. Está chegando o 2 de novembro e a terra os espera. Que descansem em paz. Se puderem.


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